São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Vilões ou heróis?

FRANCISCO GRAZIANO

No Brasil, em se plantando tudo dá. Os solos brasileiros são os melhores do mundo e o clima é excelente: dá três safras por ano. O Brasil é o celeiro do mundo. A tecnologia moderna garante produtividade a baixo custo.
Quatro frases que espelham momentos distintos da história da agricultura no país. A primeira é mais famosa, facilidade creditada a Pero Vaz de Caminha logo no descobrimento. A segunda reflete a época das imigrações européias, quando se buscava atrair braços livres para substituir os escravos do café. A terceira traduz uma megalomania cultuada pelo regime militar. A quarta deriva da ideologia modernizadora recente, utilizada para impulsionar o uso de máquinas e insumos químicos no campo.
Quatro frases enganadoras, ardilosas. Pensamentos que, em cada época, construíram no imaginário popular uma farsa. Falácias que induziram a equívocos e desvirtuaram a visão correta sobre as dificuldades da produção agropecuária no Brasil.
Criou-se um mito. Mas a realidade é outra. Na verdade, a prática a agricultura moderna em zonas tropicais, como a brasileira, mostra enormes dificuldades para ser produtiva, rentável e sustentável. Tecnicamente, os solos tropicais são ácidos e frágeis. Com o cultivo seguido, a fertilidade se esvai, os adubos se perdem e a erosão aparece ameaçadora. As pragas e doenças são, por aqui, quase incontroláveis, tornando os agrotóxicos pouco eficientes. Os ecossistemas tropicais são mais complexos, mais suscetíveis à desequilíbrios ecológicos graves.
Somam-se a isso as questões sócio-econômicas. Desde o incipiente treinamento da mão-de-obra rural até a falta de capital para os investimentos necessários à infra-estrutura produtiva, passando pelas dificuldades de comercialização. Enfim, não é fácil ser agricultor no Brasil.
O mito histórico, porém, prevalece. E as idéias de bonança e fartura fazem seguidores: do industrial ao médico, do aposentado ao político, muitos acabam comprando um pedaço de terra e, orgulhosos, proclamam-se agricultores. Iludidos, emprestam recursos, formam fazendas. E, invariavelmente, quebram a cara.
Essa compreensão equivocada sobre a lida agrária provoca um terrível mal: os agricultores verdadeiros, os trabalhadores e empresários que são os reais profissionais, que usam tecnologia adequada para produzirem o alimento e as matérias-primas que suprem as cidades e as indústrias, não recebem da sociedade a valorização devida. No máximo, são taxados de novos-caipiras.
Parece que os povos que nunca sofreram as privações da guerra não protegem devidamente sua agricultura. Dão pequena importância à produção rural. No Terceiro Mundo, agricultura é sinônimo de atraso. O campo é pobreza, a cidade beleza. Agricultura é passado, indústria é riqueza. O progresso confunde os valores sociais.
Muito bem. Hoje, no Brasil, essa visão histórica distorcida sobre a importância da agricultura está sendo agravada fortemente. E não é bom que isso aconteça. Ocorre que a discussão sobre o financiamento rural, potencializada pela polêmica atuação dos parlamentares da chamada bancada ruralista, faz parecer que os agricultores brasileiros são, sem exceção, malandros que buscam ganhar dinheiro à custa do pobre contribuinte.
Como no passado, mais uma vez se escamoteia a realidade. Idéias confusas contaminam a mídia e provocam julgamentos equivocados. Pobre homem do campo: de produtor, virou negocista. Em vez de trabalhar, quer mamata. O agricultor virou vilão.
Triste resultado. Perdeu-se a racionalidade. Assim como a distorcida discussão sobre a reforma agrária no tempo da UDR, repete-se outra discussão insana sobre o problema agrário brasileiro.
A safra recorde colhida em 1995, resultante das expectativas favoráveis provocadas pelo Plano Real, elevou a oferta de alimentos e demais produtos, fazendo seu preço cair. É o jogo do mercado.
O grave, porém, é que os baixos preços vieram, desgraçadamente, num momento de elevados juros. Pior que isso, os preços dos insumos e máquinas, além da própria mão-de-obra, elevaram-se no mesmo período. Esse movimento perverso dos preços penalizou gravemente os agricultores. Em alguns casos, a perda de renda é de 70%. Na média, quase 30% de queda.
Ao mesmo tempo, a economia popular ganhou. O custo de vida está caindo e a inflação controlada. A população mais pobre dá graças a Deus -ou ao Real- pois hoje pode comprar mais comida. Nunca se consumiu tanta carne no país. Bom para os consumidores. Ótimo para o plano de estabilização.
Mas tem o outro lado da moeda. O setor agropecuário mergulhou numa crise que está provocando enorme inadimplência junto aos bancos, cooperativas e indústrias e insumos. Os juros elevados desestimulam os negócios de compra de produtos agrícolas por parte das indústrias. A economia rural está quase parada, refletindo-se na paralisação do comércio nas cidades do interior do país.
Certamente a história condecorará os produtores rurais brasileiros entre os maiores responsáveis pelo sucesso do Plano Real. Mas, se essa situação de penúria continuar muito tempo, logo os heróis estarão mortos. Sobreviventes da desgraça collorida, os agricultores acabarão por desanimar. Perderemos nossa galinha dos ovos de ouro.
Onde está a saída? Acabar com o preconceito, separar o joio do trigo, pensar no amanhã. Para começar, é preciso entender que os ciclos da produção agropecuária são longos e dependem de leis naturais, existindo um hiato entre o plantio e a colheita, entre o bezerro e o boi gordo. Essa especificidade exige condições próprias de financiamento da atividade rural. É burrice econômica tratar a agricultura como um ramo da indústria!
Depois, cabe ao governo reconhecer que há uma crise afetando a agricultura. Por isso, a inadimplência do setor precisa ser analisada com cuidado, exigindo uma renegociação das dívidas que consiga separar os tradicionais caloteiros dos devedores honestos. Quem usou crédito rural para comprar mais terras -e muitos agricultores o fizeram- não pode ter o mesmo tratamento que os demais, que se endividaram produzindo.
Compete aos agricultores mostrar a seriedade de seus propósitos. Enquanto a sociedade continuar confundindo o segmento profissional da agricultura com os especuladores de terras e os latifundiários, nunca se formará uma opinião pública favorável às suas reivindicações, mesmo que justas. Essa deficiência do marketing rural é trágica para o desenvolvimento do setor.
As negociações entre o governo e a bancada ruralista do Congresso, deixando à margem as lideranças do agrobusiness, politizou demais a questão e confundiu a mídia. Ao invés de uma política agrícola nova, pareceu tudo uma grande negociata do tipo "você me perdoa aqui, eu voto lá... Afinal, quem fala pela agricultura?
Apesar das nuvens negras, prenunciando tempos ruidosos, há um horizonte favorável. O financiamento da próxima safra está equacionado: os juros serão fixos, de 16% ao ano para empréstimos até 150 mil reais. Quer dizer, se a inflação for de 20% durante o ano, os juros do crédito rural serão negativos: menos 4%. Para os pequenos agricultores garante-se ainda a equivalência-produto.
Com o aumento de renda das camadas mais pobres, devido aos efeitos positivos da estabilização, a demanda por gêneros agropecuários estará permanentemente aquecida, possibilitando a recuperação dos preços agrícolas. Não é mau o cenário.
Ruim é a radicalização, pois forma caldo de cultura onde prosperam o oportunismo e a demagogia. E se o jogo continuar embolado, perderemos todos. É preciso separar o joio do trigo e dialogar serenamente. A nação está cansada de extremismos. E de mentiras.

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