São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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O que fazer agora com o teatro?

GERD BORNHEIM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Primeira razão
O primeiro ponto a destacar nos textos e no pensamento de Brecht reside justamente nesse sentido do compromisso, na entrega total a uma causa transida de severidades. O importante está aqui: são as posições políticas de Brecht que tudo determinam, mesmo na maioria das peças de juventude.
Mas, se é nesse compromisso político que está a raiz de tudo, é também no cerne dele que sobressai uma distinção em nada secundária: a diferença entre o político e o social. Os tempos de convívio prático com o trabalho de Piscator fizeram Brecht compreender claramente, entre outras coisas, que o seu teatro jamais seria político. Social, sim, e sempre.
Piscator fazia espetáculos que eram imediatamente políticos; ele não apresentava ou discutia temas políticos assim como quem analisa um objeto. Seu teatro era ação política em si mesmo, uma espécie de aderência total ao caráter imediato e urgente da necessidade política partidária. Brecht participou por um momento, e não sem entusiasmo, do fervor do seu amigo. Mas não tardou em perceber que essa forma de imanentismo não poderia ser o seu caminho.
Em verdade, Brecht escreveu apenas uma peça de caráter político, "Terror e Miséria do Terceiro Reich, com sua sequência de pequenas cenas tomadas da imprensa e de outras fontes. Mas nosso autor é bem claro: não se deve ver, nestes textos, nem teatro, nem uma forma de dramaturgia: trata-se tão-somente de propaganda política contra o nazismo. A sua marca, por assim dizer utilitária e dramaturgicamente despretensiosa, permite até que aquelas cenas possam ser reaproveitadas em outras circunstâncias e que, para isso, sejam a elas readaptadas.
Brecht nunca foi, com propriedade, um agitador político. Nunca deixou também de tomar posição em todas as situações sociais que agrediam a sua consciência de marxista convicto. Mas não há indícios de que as reservas em relação à sua obra por parte do stalinismo soviético tenham fomentado em nosso poeta qualquer tipo de constrangimento maior.
Um dos aspectos mais impressionantes da atividade de Brecht reside precisamente na extrema fidelidade que sempre manteve com a especificidade de seu tipo de trabalho: o seu meio de expressar-se concentrava-se essencialmente na exploração da linguagem teatral. Brecht não foi um homem de teatro de modo simplesmente acidental. Todos os seus compromissos -sociais, políticos e seja o que for passavam pelas tábuas do palco. E de um palco que nunca recusou os seus impulsos interiores de renovação. Note-se que isso tudo não está em contradição com a assertiva de que, em Brecht, tudo é essencialmente político: a razão de ser do teatro não poderia estar no próprio teatro.

Segundo motivo
O tema, assim colocado, leva-nos a um segundo ponto: o entusiasmo de Brecht pela pesquisa formal. Num primeiro momento, as coisas podem parecer inconciliáveis. Sabe-se da inútil polêmica: o realismo social, à maneira de Lukács, tutorado pela polícia, acabou diluído no pior. E o instinto certeiro de Brecht percebeu já bem cedo o peso do desempenho da pesquisa formal.
Mas o dramaturgo não radicaliza. Exaurido o conceito de imitação, na acepção platônico-hegeliana, a estética moderna cinde-se em duas amplas linhas, que por vezes forçam o intercâmbio mútuo: desenvolve-se a estética da expressão, dominada pelo confessionalismo da categoria da subjetividade, e há a estética do objeto, e parecia nem haver a alternativa de uma terceira via. Mas logo o panorama se torna inquieto e acaba se fixando na invenção da forma, na pesquisa das linguagens específicas, além das categorias de sujeito e objeto.
Contudo, Brecht, repito, não radicaliza: ele permanece fiel à perspectiva objetivista, ainda que se processe em sua obra, lentamente, a descoberta do sujeito, incluída aí a sua relativa aproximação ao método de Stanislavsky.
Mas Brecht, exatamente por nunca abandonar a sua diligência para as coisas sociais, percebeu toda a valia da exploração das dimensões formais para a renovação do teatro. O que não leva a dizer, evidentemente, que se tenha dedicado ao culto do formalismo. Para ele, é antes o chamado realismo social que, ao reproduzir dogmaticamente o mundo social, termina incidindo num formalismo inconsistente. O teatro se faz histórico e social através da manipulação da forma e não tanto pelo conteúdo. A tese inicial de Wõlfflin acaba forçosamente desmentida: a historicidade essencial da arte se manifesta através da forma. E a invenção brechtiana neste particular revelou-se intensamente fecunda.

Terceiro ponto
O que vem de ser dito permite o entendimento de um terceiro ponto, e este remete ao caráter problematizador da estética de Brecht. Nosso poeta é, em primeiríssimo lugar, um homem do discurso. Por aí, ele se afasta do ``vazio" de Beckett (``Eu não tenho o que dizer, mas só eu sei como dizer isso") e se distancia também da vertigem do grito originário de Artaud.
O discurso brechtiano se desdobra em dois níveis, o da língua e o do espetáculo, e sabe-se que entre eles não há uma unicidade redutora: tudo acontece embasado no conceito central de separação. E é precisamente este conceito que vai motivar toda a pesquisa formal de Brecht.
Ao menos num ponto, Brecht consegue ser realmente radical e isso em relação à totalidade da história do teatro: ele foi um problematizador do fenômeno teatral considerado em todos os seus aspectos. Claro que esse caráter de problematização só poderia ter ocorrido em nosso tempo. E é importante que se acrescente que esse tipo de postura permanece essencialmente aberto, ele se deixa determinar por um modo de criatividade que mergulha na categoria do novo -esta também um traço distintivo de nossos dias.
O estilo nunca chega a ser definitivo, como se se tratasse de uma resposta finalmente alcançada: agora, tudo se faz pergunta e é justamente a pergunta que só se satisfaz com uma originalidade, que se aquieta apenas na própria renovação.
O paralelo com Picasso parece ser, neste ponto, em tudo ilustrativo. Para o espanhol, a sequência de fases, a renovação constante do estilo acopla-se a um diálogo com a história da pintura, e é um pouco isso o que faz Brecht também: se ele pretende superar a tradição teatral, não é nunca ignorando esse passado; ele dialoga, e em diversos níveis, com o passado; mesmo as coisas mais inovadoras, como a experiência épica tal como ele a entende, ele a rastreia através do tempo, incluído aí o Oriente.
Neste sentido, o seu teatro resume um modo de codificar a consciência histórica. Tal como Picasso: o olho no passado inventa um novo estilo, supera, conservando. Ressalto, portanto, dois aspectos cardeais da estética brechtiana: a extensão, inédita, do sentido de problematização da realidade teatral, em que tudo é repensado na prática do teatro a partir de suas raízes, e, por outro lado, o modo também inusitado de assumir a experiência teatral do passado, e Brecht o faz de maneira dialética, ou seja, crítica. O escopo fundamental de nosso dramaturgo deixa-se condensar numa simples palavra: ser plenamente um clássico.

Quarto aspecto
Um quarto aspecto a mencionar está no modo de ser um clássico. São dois os níveis, disse: o texto e o espetáculo. E é nos dois que se vê infiltradas as virtudes de uma mentalidade acabadamente clássica. Nem é preciso lembrar: não se poderia tratar, para Brecht, de alcançar o nível da ``alta poesia" de um Schiller, todo embriagado de idealidades. Brecht não abandona a terra firme: ele foi leitor atento da tradução da Bíblia por Lutero e foi nessa fonte que aprendeu a assenhorar-se da linguagem popular, cotidiana.
Não é simples questão de tomada de partido ou algo dessa espécie. É muito antes uma forma de comprometimento com a língua em si mesma e um compromisso que recusa todo e qualquer improviso, qualquer mimetismo do linguajar que se ouve na rua. Claro que sua inspiração primeira está no homem que fala, sofre e ri dentro de uma situação social bem determinada. Mas isto é pretexto e não texto. O texto exige uma elaboração em tudo pertinente, que está longe de recusar a melhor inspiração poética, um ritmo que de saída se aproxima da musicalidade -mais um pequeno passo, e as palavras se abrem em música propriamente dita.
Quanto ao espetáculo, a preferência de Brecht vai para uma certa forma de liturgia, para movimentações ritualísticas que se entrosam com suas técnicas de distanciamento; ele realiza tais cometimentos através, por exemplo, e sobretudo, do afastamento no espaço e no tempo.
Mas o mais significativo está nos procedimentos de elaboração do gesto. Já num sentido por assim dizer imediato, o gesto submete-se a um processo de certa forma de empostação; ele como que se distancia em relação a si mesmo, assumindo por vezes até um tom solene. E esse gesto se deixa complementar pelo emprego de objetos. Se a ação se passa, por exemplo, durante a Guerra dos 30 Anos, a simples presença de um copo deve ostentar a autenticidade, o estilo, a elegância da época.
Mas o mais importante está numa noção trabalhada por Brecht -mais na prática do que na teoria- em seus anos maduros: o conceito de gestus. Para aceder ao que a palavra latina pretende, convém atentar à distinção entre intriga e ação dramática.
A intriga usa recursos em princípio mutáveis para armar a ação dramática, mas é esta que fornece um sentido preciso ao que se vê em cena; mude-se a ação, e modifica-se o próprio sentido da peça. Já os elementos utilizados na intriga revelam-se variáveis e substituíveis.
Digamos, então -o esquema é nosso-, que há toda uma gestualidade que se vincula à intriga, de tipo realista se se quiser; são os gestos inerentes ao comportamento usual das personagens. Já o gestus oferece outra índole: ele consiste na criação de uma determinada postura física (que pode incluir a palavra), que torna evidente o ser ou o modo de ser da personagem dentro da ação dramática.

Quinto tema
Estes dois níveis, texto e espetáculo, levam a definir um quinto tema, medular para a apreensão do sentido do teatro brechtiano: a natureza da síntese entre eles. Aqueles elementos devem permanecer dissociados e regidos pelo princípio da separação. Digamos que a relação se faz dialética, mas num sentido bem preciso.
Procurei mostrar em outro lugar que a dialética atravessa, contemporaneamente, uma modificação que alcança o seu próprio fundamento. Se, na metafísica de Hegel, a dialética se faz constituída por três momentos essenciais -tese, antítese e síntese-, e por mais que em seu pensamento se realce a antítese, ou seja, a contradição ou a negatividade que lhe é inerente, em definitivo quem leva a melhor é a síntese: a totalidade final constrói a integração de tudo o que compõe a realidade; nesta forma de panteísmo busca-se a fusão do Criador e do mundo das criaturas.
Acontece que, com a crise da metafísica, é justamente a preeminência da totalidade, ou da síntese, que acaba prejudicada; ela passa a ser, no melhor dos casos, processo totalizador. A ênfase situa-se agora no plano das contradições finitas. Com isto, verifica-se um deslocamento do próprio fundamento da dialética: do processo onto-teo-lógico passamos para a afirmação do plano da finitude, formado essencialmente pelas tramas das contradições.
Pois o papel central que Brecht atribui à separação combina-se perfeitamente bem com a breve análise feita. O espetáculo, ao invés de ensejar a fusão de todos os elementos que o constituem, deve arrimar-se na prática da separação, cujo veículo mais preciso está nas técnicas de distanciamento. Por ser demasiado complexo, não entro no tema. Lembro apenas que, e já que fiz uma referência de caráter filosófico à natureza da dialética, Brecht busca com o distanciamento nada menos do que reinventar o comportamento do espectador em face do espetáculo. Duas observações a respeito disso.
A primeira: sabe-se que Brecht submete a uma crítica demolidora a hegemonia das emoções que avassala o espectador na tradição, digamos, aristotélica, a começar pelas apregoadas pelo velho grego: o terror e a piedade; não se poderia tratar, evidentemente, de negar a presença das emoções e sim de prejudicar aquela hegemonia.
Com tal intuito, Brecht pretende que o espectador desenvolva um tipo de comportamento mais filosófico, ou científico, e, para isto, ele recorre às antigas posturas já enfatizadas pelos gregos, a começar pela admiração, pelo espanto; mas recorre também à alegria em poder ver o real, à satisfação de um Galileu a acompanhar com seu instrumento a dança das estrelas.
A segunda: estas atitudes só se realizam a contento se elas se tornarem propriamente racionais, ou seja, elas devem fomentar o espírito crítico, instaurar um ver crítico. Para isso, Brecht elabora os elementos que pertencem ao mundo das contradições e ele o faz em dois sentidos.
Tudo isso dito, e para concluir, parece até ironia que no final de sua vida Brecht sonhasse em superar o teatro por ele mesmo batizado de épico a favor de uma cena que seria mais propriamente dialética. Mas tudo indica que o novo ideário não poderia ir muito além de um processo de aprofundamento das idéias expostas.
Isso nos leva a lembrar um traço muito peculiar do modo como Brecht via o seu próprio pensamento e a razão de ser de sua obra: ele sabia que a arte é, antes de tudo, efêmera. Questão de coerência: se o seu teatro quer dissecar as contradições sociais, é para que o homem aprenda a superá-las. Mas, ao fazê-lo, aquela dissecação perde sentido. E é isso mesmo: o teatro se quer agora mortal.
É bem estranha a história do caráter efêmero do teatro. Para os antigos, gregos e medievais, o teatro como que se bastava em sua própria efemeridade. Mas havia um detalhe: o que o teatro mostrava era o próprio rosto divino. A partir do século 17, as coisas se modificam: os deuses põem-se a abandonar a cena e é a literatura dramática que passa a nobilizar-se como eterna e imortal. Hoje, de muitas maneiras, em diversos níveis, o efêmero mostra-se como signo da finitude radical do homem e de suas coisas. E disso Brecht sabia.

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