São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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O pobre BB no mercado de mentiras

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

"Toda manhã, para ganhar meu pão,
Vou ao mercado onde se compram mentiras.
Esperançoso,
Entro na fila dos vendedores".

Com estes versos, Brecht sumariou sua infausta passagem por Hollywood. A palavra-chave é o adjetivo. Apesar de tudo, Brecht tinha esperança de vender suas mentiras, mas quase não encontrou compradores. Para ganhar seu pão, sujeitou-se às regras do jogo, aceitando trabalhos miúdos, como roteirista. Um único filme chegou às telas com seu nome nos créditos, "Os Carrascos Também Morrem" (Hangmen Also Die), dirigido pelo amigo Fritz Lang. Assim mesmo, no lugar errado. Ele não havia sido apenas co-autor da história original; também fizera o roteiro, exclusivamente creditado ao americano John Wexley.
Pobre Brecht.
Pobre, vírgula. Hollywood fez com ele o que ele costumava fazer com seus colaboradores. Já se sabia disso bem antes de John Fuegi lançar sua iconoclástica biografia, no final do ano passado. "Ele não tinha boas maneiras nem era decente com os outros", admitiu há tempos o insuspeito Eric Bentley, principal divulgador de Brecht nos países de língua inglesa.
Arrogante, misantropo, oportunista, "muito cansativo" (segundo Orson Welles), grosseiro, porcalhão (fedia a charuto e chulé) -com o passar dos anos, uma nova imagem de Brecht, por certo mais humana, foi se formando à revelia dos seus hagiólatras. Nem por isso, ele deixou de ser o mais fascinante e influente dramaturgo do século.
O cinema não lhe deu glórias -muito menos o americano, visceralmente avesso a "distanciamentos críticos". Nem sequer na Alemanha conseguiu impor seu gênio atrás das câmeras. Salvo pela experiência de "Kühle Wampe, renomada obra de agitação comunista que Slatan Dudow dirigiu em 1932, nada de especial concebeu em sua terra natal. Das duas adaptações de "A Ópera de Três Vinténs", só a de Pabst, filmada em 1931, resistiu ao tempo. Brecht, porém, a detestava; tanto que moveu um processo contra seus produtores.
A despeito de estima que as pouco vistas adaptações de "Mãe Coragem", "Galileu" e "O Senhor Puntila e Seu Criado Matti" (dirigido na Áustria pelo brasileiro Alberto Cavalcanti, 40 anos atrás) desfrutam na Europa, a mais decisiva contribuição de Brecht ao cinema se deu através de suas radicais teorias sobre dramaturgia e arte cênica. Não é de Pabst e Lang, nem muito menos de Cavalcanti, que nos lembramos quando ouvimos falar em épico brechtiano, e sim de Eisenstein, Dziga Vertov, Godard, Glauber Rocha, Jean-Marie Straub, cineastas pretensamente dialéticos e nada populares.
Brecht desembarcou na Califórnia a 21 de julho de 1941, a bordo de um navio sueco. Trouxe a mulher, Helene Weigel, dois filhos e a amante (oficialmente, assistente), Ruth Berlau. Jogara ao mar os seus livros de Lênin, para evitar complicações na alfândega. A costa Oeste foi uma escolha judiciosa: na área de Los Angeles moravam diversos artistas e intelectuais alemães e austríacos, também foragidos do nazismo, o aluguel era mais barato e a oferta de trabalho, para quem vivia de escrever, bem mais farta que em Nova York.
Cismou com o clima ("o ar não tem cheiro"), a rigidez sazonal ("as estações são todas iguais") e a comida, indispôs-se com seu parceiro Kurt Weill, ficou ainda mais impaciente e intratável. A atriz Elsa Lanchester, mulher de Charles Laughton, lembra-se dele, contudo, como um sujeito permanentemente bem-humorado, sempre com uma observação irônica na ponta da língua. Brecht admirava o talento de Laughton e com ele, mais o diretor de cinema Joseph Losey, montou num teatro de Los Angeles uma histórica versão de "Galileu", atualizada à crise de consciência que a recente explosão das bombas de Hiroshima e Nagasaki causara na comunidade científica americana.
Este projeto só não foi adiante por causa de uma gravidez. Quando nasceu o filho da atriz Teresa Wright, a Resistência Francesa já não era, aos olhos de Goldwyn, um tema comercialmente interessante. Mas foi por conta dessa frustrada produção que Brecht faturou seu mais alto pro-labore em Hollywood: US$ 50 mil.
Não se livrou da "caça às bruxas". Nem havia como. Era tido como comunista e por mais de 13 anos foi vigiado pelo FBI. Ao contrário do que seus amigos esperavam, comunista (filiado ao partido, de fato, não era), levou charutos para comprar a simpatia de seu principal interrogador e um intérprete para se escudar em erros de tradução. Enrolou todo mundo, mas saiu profundamente abalado do depoimento. Direto para a fila dos perdedores. Na mesma noite, embarcou para a Europa. Para sempre.

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