São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995 |
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A cidadania do transexual
ROBERTO FARINA
A Comissão de Justiça da Câmara Federal aprovou o projeto do deputado José de Castro Coimbra legalizando a mudança de sexo para o transexual. Já nessa etapa, o projeto foi acusado de carecer de "juízo e de moral", provavelmente por gente do terceiro gênero de cérebro da epígrafe. Para minar preconceitos, frutos da ignorância que comprometem qualquer julgamento, urge considerar a "etimologia médica" do transexual. Afinal, o projeto legalizando a sua operação deverá entrar em destaque na Câmara logo mais. Em primeiro lugar, o transexual tem uma identidade própria, díspar das identidades do homossexual, do transvestido (erroneamente chamado de travesti) e do hermafrodita. Para compreendê-la é necessário recuar até a matriz da realidade do transexual. Com a concepção (conjugação espermatozóide-óvulo), temos o ovo. Este dará origem ao embrião, que se desenvolverá como feto nos últimos sete meses da gestação. Na fase do embrião, as gônadas (glândulas sexuais) ainda estão indiferenciadas. O cérebro (hipotálamo) também é neutro. Se um óvulo 22X for fecundado por um espermatozóide 22Y, resultará em 44XY -ou seja, um macho, ocasião em que a gônada indiferenciada se transforma em testículo. Na ausência do cromossomo Y, a gônada se mantém neutra, resultando em um ovário. Para efeito de ilustração, vamos explicar o transexual masculino. Ele surge quando a mensagem enviada pelo testículo do feto (testosterona) não chega ao cérebro. Outra possibilidade é o cérebro não receber a mensagem por defeito em seus receptores. Com isso, o cérebro continuará neutro ou feminino, isto é, será incompatível com o gênero da glândula sexual (masculina, no exemplo citado). O transexual masculino tem genitália masculina e cérebro feminino. Isso explica por que nem a influência do meio ambiente, nem a educação alteram a sua realidade. Ele não se torna transexual, ela já nasce transexual. O transexual masculino é um indivíduo de alma feminina enclausurada num corpo masculino. A partir dos quatro anos, ele demonstra preferir roupas, brinquedos e companhia de meninas. Já na adolescência, repudia a própria genitália como excrescência repulsiva. Os conflitos psicológicos daí decorrentes são incalculáveis, geradores de muita ansiedade e grande desespero. O resultado final, quando não há tratamento cirúrgico, pode chegar até mesmo à ocorrência de automutilação (amputação peno-escrotal, no caso de transexual masculino, ou deformação constritiva das mamas, no caso de transexual feminino) ou suicídio. É bom lembrar que transexual não é homossexual, transvestido e nem hermafrodita. Contrariamente ao que se pensa, o transvestido é heterossexual. Cumpre observar que nos referimos a homens -que até podem ser bem casados- que se excitam vestindo-se de mulher, esporadicamente. Não estamos falando dos "travestis", que se exibem até de forma agressiva nas ruas. O homossexual, por sua vez, fez uma opção sexual pelo mesmo sexo sem, contudo, repudiar a sua própria genitália. Tanto homossexuais quanto transvestidos não cogitam fazer a operação de reversão sexual. Além de ter genitália operante, eles se identificam com ela e a usam prazerosamente no intercurso sexual. O hermafrodita, como todos sabem, apresenta duas genitálias (feminina e masculina) e é um caso a parte. O transexual tem um perfil psicossomático próprio: O transexual masculino assume, em geral, o papel feminino apesar do corpo de homem e apesar do alto preço que a sociedade lhe impõe (segregação, chacotas, situação não legalizada etc.); Ele não é mais neurótico do que a média da população. A verdadeira neurose pode instalar-se como consequência de não vislumbrar saída para o seu problema fora da cirurgia; Não se conforma com a presença dos órgãos genitais e nem com o aparecimento dos caracteres sexuais secundários (ejaculação, barba, bigode, voz "grossa", pêlos corpóreos, gogó etc., no transexual masculino, e mamas, menstruação voz "fina" etc., no transexual feminino). Tem atração sexual dirigida para uma pessoa de outro sexo. Por exemplo, o transexual masculino, sentindo-se como verdadeira mulher, tem atração por um homem "heterossexual". Por repudiar os próprios caracteres sexuais, não sente prazer em manipular a própria genitália; É, geralmente, estéril. Os testículos do transexual masculino são, normalmente, esclerosados, e o pênis não tem ereção. No transexual feminino, a tendência é encontrar ovários atrofiados; Sonha durante toda a vida em fazer a operação para mudança de sexo; Depois de operado, consegue se realizar com a perfeita adequação do sexo orgânico ao sexo genérico (cerebral). O único tratamento possível para o transexual é o cirúrgico. Todas as tentativas de tratamento com hormônios, psicoterapia, hipnose ou seja lá o que for são frustrantes e inúteis. Para ser operado, o indivíduo deve ser maior de idade, mentalmente capaz e passar por uma bateria de exames laboratoriais e psicológicos exigida por uma equipe médica composta de psiquiatra, psicólogo, endocrinologista, citogeneticista, urologista, ginecologista e radiologista. O acompanhamento dos transexuais operados permite ratificar com as provas empíricas o acerto da indicação cirúrgica. Casos operados há mais de 20 anos demonstram pessoas vivendo em quase perfeita harmonia com a família e na sociedade. Alguns vivem com companheiros, outros se casaram. A harmonia só não é total por conta das agruras de não ter a situação legalizada perante o Estado. Por isso, a sociedade precisa abrir os olhos, inteirando-se do drama vivido pelo transexual, para não cair no terceiro gênero de cérebro denunciado por Maquiavel. A operação de reversão sexual do transexual já é permitida em países como Itália, Suécia, Dinamarca, Noruega, Holanda, Finlândia, Alemanha e em alguns Estados dos Estados Unidos, entre outros. No Brasil, a situação continua lamentável com transexuais vivenciando na própria pele o preconceito e a ignorância que cercam o assunto. Só os transexuais de alto poder aquisitivo têm o privilégio de viajar para fazer em outro país a operação. Mesmo assim, quando voltam, não conseguem legalizar seus documentos. O projeto do deputado José de Castro Coimbra é a única luz possível no fim do túnel desse pesadelo. A operação de mudança de sexo do transexual precisa ser legalizada para permitir vida plena ao transexual. Prefiro manter a confiança e acreditar que um amplo debate sobre o transexualismo vai acontecer. À luz de argumentos médicos irrefutáveis, serão eliminados tanto a ignorância daqueles que não entendem o problema quanto leis obsoletas, algozes de um ser humano que, apesar da proximidade do século 21, permanece acorrentado, sem direito a tratamento ou cidadania. Texto Anterior: HISTÓRIA; LEI DE MURPHY; BIODIVERSIDADE; PALAVRA Próximo Texto: Plano de vacinação global contra a Aids pode custar US$ 30 bilhões Índice |
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