São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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A cidadania do transexual

ROBERTO FARINA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O selo da ignorância tem ratificado a barbárie ao longo da história das civilizações (genocídios perpetrados por colonizadores, por nazistas na Segunda Guerra Mundial ou por sérvios na Bósnia). Hoje, contudo, não podemos mais nos vestir de inocência para errar. Se no tempo da colonização o saber estava restrito a uma elite religiosa, agora é impossível alegar ignorância ou neutralidade sobre assuntos candentes como o da cidadania do transexual. A onipresença dos meios de comunicação transforma o orbe terrestre em aldeia global e elide quaisquer subterfúgios de escape.
A Comissão de Justiça da Câmara Federal aprovou o projeto do deputado José de Castro Coimbra legalizando a mudança de sexo para o transexual. Já nessa etapa, o projeto foi acusado de carecer de "juízo e de moral", provavelmente por gente do terceiro gênero de cérebro da epígrafe.
Para minar preconceitos, frutos da ignorância que comprometem qualquer julgamento, urge considerar a "etimologia médica" do transexual. Afinal, o projeto legalizando a sua operação deverá entrar em destaque na Câmara logo mais.
Em primeiro lugar, o transexual tem uma identidade própria, díspar das identidades do homossexual, do transvestido (erroneamente chamado de travesti) e do hermafrodita. Para compreendê-la é necessário recuar até a matriz da realidade do transexual.
Com a concepção (conjugação espermatozóide-óvulo), temos o ovo. Este dará origem ao embrião, que se desenvolverá como feto nos últimos sete meses da gestação.
Na fase do embrião, as gônadas (glândulas sexuais) ainda estão indiferenciadas. O cérebro (hipotálamo) também é neutro.
Se um óvulo 22X for fecundado por um espermatozóide 22Y, resultará em 44XY -ou seja, um macho, ocasião em que a gônada indiferenciada se transforma em testículo. Na ausência do cromossomo Y, a gônada se mantém neutra, resultando em um ovário.
Para efeito de ilustração, vamos explicar o transexual masculino. Ele surge quando a mensagem enviada pelo testículo do feto (testosterona) não chega ao cérebro. Outra possibilidade é o cérebro não receber a mensagem por defeito em seus receptores. Com isso, o cérebro continuará neutro ou feminino, isto é, será incompatível com o gênero da glândula sexual (masculina, no exemplo citado).
O transexual masculino tem genitália masculina e cérebro feminino. Isso explica por que nem a influência do meio ambiente, nem a educação alteram a sua realidade. Ele não se torna transexual, ela já nasce transexual.
O transexual masculino é um indivíduo de alma feminina enclausurada num corpo masculino. A partir dos quatro anos, ele demonstra preferir roupas, brinquedos e companhia de meninas. Já na adolescência, repudia a própria genitália como excrescência repulsiva. Os conflitos psicológicos daí decorrentes são incalculáveis, geradores de muita ansiedade e grande desespero. O resultado final, quando não há tratamento cirúrgico, pode chegar até mesmo à ocorrência de automutilação (amputação peno-escrotal, no caso de transexual masculino, ou deformação constritiva das mamas, no caso de transexual feminino) ou suicídio.
É bom lembrar que transexual não é homossexual, transvestido e nem hermafrodita. Contrariamente ao que se pensa, o transvestido é heterossexual. Cumpre observar que nos referimos a homens -que até podem ser bem casados- que se excitam vestindo-se de mulher, esporadicamente. Não estamos falando dos "travestis", que se exibem até de forma agressiva nas ruas. O homossexual, por sua vez, fez uma opção sexual pelo mesmo sexo sem, contudo, repudiar a sua própria genitália.
Tanto homossexuais quanto transvestidos não cogitam fazer a operação de reversão sexual. Além de ter genitália operante, eles se identificam com ela e a usam prazerosamente no intercurso sexual. O hermafrodita, como todos sabem, apresenta duas genitálias (feminina e masculina) e é um caso a parte.
O transexual tem um perfil psicossomático próprio:
O transexual masculino assume, em geral, o papel feminino apesar do corpo de homem e apesar do alto preço que a sociedade lhe impõe (segregação, chacotas, situação não legalizada etc.);
Ele não é mais neurótico do que a média da população. A verdadeira neurose pode instalar-se como consequência de não vislumbrar saída para o seu problema fora da cirurgia;
Não se conforma com a presença dos órgãos genitais e nem com o aparecimento dos caracteres sexuais secundários (ejaculação, barba, bigode, voz "grossa", pêlos corpóreos, gogó etc., no transexual masculino, e mamas, menstruação voz "fina" etc., no transexual feminino). Tem atração sexual dirigida para uma pessoa de outro sexo. Por exemplo, o transexual masculino, sentindo-se como verdadeira mulher, tem atração por um homem "heterossexual".
Por repudiar os próprios caracteres sexuais, não sente prazer em manipular a própria genitália;
É, geralmente, estéril. Os testículos do transexual masculino são, normalmente, esclerosados, e o pênis não tem ereção. No transexual feminino, a tendência é encontrar ovários atrofiados;
Sonha durante toda a vida em fazer a operação para mudança de sexo;
Depois de operado, consegue se realizar com a perfeita adequação do sexo orgânico ao sexo genérico (cerebral).
O único tratamento possível para o transexual é o cirúrgico. Todas as tentativas de tratamento com hormônios, psicoterapia, hipnose ou seja lá o que for são frustrantes e inúteis.
Para ser operado, o indivíduo deve ser maior de idade, mentalmente capaz e passar por uma bateria de exames laboratoriais e psicológicos exigida por uma equipe médica composta de psiquiatra, psicólogo, endocrinologista, citogeneticista, urologista, ginecologista e radiologista.
O acompanhamento dos transexuais operados permite ratificar com as provas empíricas o acerto da indicação cirúrgica. Casos operados há mais de 20 anos demonstram pessoas vivendo em quase perfeita harmonia com a família e na sociedade. Alguns vivem com companheiros, outros se casaram. A harmonia só não é total por conta das agruras de não ter a situação legalizada perante o Estado.
Por isso, a sociedade precisa abrir os olhos, inteirando-se do drama vivido pelo transexual, para não cair no terceiro gênero de cérebro denunciado por Maquiavel.
A operação de reversão sexual do transexual já é permitida em países como Itália, Suécia, Dinamarca, Noruega, Holanda, Finlândia, Alemanha e em alguns Estados dos Estados Unidos, entre outros. No Brasil, a situação continua lamentável com transexuais vivenciando na própria pele o preconceito e a ignorância que cercam o assunto. Só os transexuais de alto poder aquisitivo têm o privilégio de viajar para fazer em outro país a operação. Mesmo assim, quando voltam, não conseguem legalizar seus documentos.
O projeto do deputado José de Castro Coimbra é a única luz possível no fim do túnel desse pesadelo. A operação de mudança de sexo do transexual precisa ser legalizada para permitir vida plena ao transexual.
Prefiro manter a confiança e acreditar que um amplo debate sobre o transexualismo vai acontecer. À luz de argumentos médicos irrefutáveis, serão eliminados tanto a ignorância daqueles que não entendem o problema quanto leis obsoletas, algozes de um ser humano que, apesar da proximidade do século 21, permanece acorrentado, sem direito a tratamento ou cidadania.

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