São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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NA ESPIRAL DA HISTÓRIA

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

``Quanto ao futuro, é preciso não esquecer que o movimento do tempo cultural não é linear: certamente, alguns temas podem deixar de estar definitivamente em moda, mas outros, aparentemente amortecidos, podem regressar ao palco das linguagens: estou persuadido de que Brecht, que parece ter desaparecido do campo da vanguarda, ainda não disse a sua última palavra: ele regressará, se assim posso dizer, em espiral: era a bela imagem da história proposta por Vico (retomar a história sem a repetir, sem a repisar).
Roland Barthes (set/1971)

Há muito que se aguarda o regresso do autor alemão Bertolt Brecht, e nada. Com a finalização de "Teatro Completo", cujo último volume é lançado agora pela editora Paz e Terra, ele ganha mais uma chance, no Brasil.
O livro, que traz dez peças inacabadas, colaborações e adaptações, encerra um projeto iniciado há oito anos, sob a direção de Fernando Peixoto, e que contou com traduções de Millôr Fernandes, Roberto Schwarz e Geir Campos, entre outros.
"Teatro Completo" dá nova oportunidade, mas poucos parecem estar dispostos a apostar no regresso de Bertolt Brecht (1898-1956), em espiral ou não, no Brasil e no mundo. Pelo menos, não por agora.
``Estamos agora numa época em que o fato de ele ser um homem explicitamente comprometido com uma posição política de esquerda, especialmente com o socialismo, com o comunismo, com o leninismo, prejudica muito a relação inicial das pessoas com ele", diz o escritor e ensaísta Leandro Konder, 59.
``Existem marcas na obra dele dessa vinculação, desse envolvimento, e as pessoas, tropeçando nas marcas, ficam chocadas, têm uma certa dificuldade de entender. Isso influi muito."

Tempo ruim
Socialismo é o que espanta. A política é o que assusta produtores, diretores e atores das peças de Brecht, no Brasil como nos Estados Unidos.
A opinião do dramaturgo americano Tony Kushner, que vem de uma adaptação de ``A Alma Boa de Setsuan" (ou A Boa Pessoa de Setsuan, escrita por Brecht em 1938-41), segue o pensamento de Leandro Konder.
``Este é um momento muito ruim. Eu não sei como estão as coisas no Brasil, mas na América é um tempo muito ruim. Socialismo... As coisas que Bertolt Brecht tem para dizer não são ouvidas com simpatia no momento", diz Kushner, 38.
``Eu acredito que tem que existir, para todo teatro, uma certa prontidão. O terreno tem que ser preparado, de certa maneira. Na minha adaptação de `A Alma Boa de Setsuan' com o grupo de rock Los Lobos, neste verão na Califórnia, você podia ver que a platéia não estava... Quer dizer, a platéia estava como que ansiosa para não acreditar, ansiosa para não ouvir a política da peça."
Autor de ``Angels in America", Kushner diz que Brecht foi a sua maior influência, como escritor. Em cartaz em São Paulo com a peça ``Atos e Omissões", o autor brasileiro Bosco Brasil diz o mesmo, como é regra.
Ele recorda que o interesse pelo autor alemão começou a cair nos anos 80, no Brasil, onde o teatro vinha de um grande envolvimento com a dramaturgia brechtiana, nos anos 60 e 70.
``O paradoxo foi que o país, a minha geração, começava a se politizar. Havia uma abertura, eleições e, paradoxalmente, as pessoas se interessavam menos pelo teatro político", diz Brasil, 35.
``A minha interpretação, então, foi que o país estava saindo de um período de fechamento político e as radicalizações da esquerda, que só via a possibilidade de um teatro engajado no sentido de engajado ideologicamente, haviam cansado, haviam criado um cansaço em relação a Brecht."
Ele se lamenta. ``Hoje, dez anos depois, eu imaginava que isso fosse mudar, que as pessoas se distanciariam e Bertolt Brecht voltaria a ser visto como o grande escritor que é, independente da postura ideológica."
Não foi o que aconteceu. Se não é de agora que a política de Brecht espanta, como também indica a observação de Roland Barthes, na epígrafe tirada do prólogo para os ``Ensaios Críticos", é certo que a consciência disso nunca foi tão disseminada.

Mensagem velha
Konder, Kushner e Bosco Brasil ainda falam disso com uma certa tristeza. Não é o caso do dramaturgo alemão Klaus Pohl, 41, que se notabilizou por peças amargas sobre a nova Alemanha, por peças amargas sobre a herança do socialismo real.
``A mensagem das peças dele é muito velha, o tempo dele acabou", diz Klaus Pohl, com certo desdém, ele que escreve no momento um roteiro para um filme de ficção intitulado ``Brecht", uma produção alemã.
``Os pontos que ele sempre levanta, como na `Ópera de Três Vinténs'... As peças tiveram um grande momento nos anos 50 e 60, no mundo inteiro, na Itália, na França, na América, também na América do Sul, mas os tempos mudaram, os tempos agora estão completamente mudados."
Mas tão completamente mudados, que Tony Kushner acredita que Bertolt Brecht nunca fez tanta falta quanto agora. Nunca fez tanta falta a moral política do comunista Bertolt Brecht.
``Eu não sei de nenhum outro momento na história em que um `revival' (ressurgimento, renascimento) de Brecht fosse mais importante", diz o autor americano, com uma risada.
``Há coisas muito simples que ele está dizendo nas suas peças, sobre justiça econômica e social, coisas que nós esquecemos completamente e sobre as quais nós realmente precisamos voltar a pensar outra vez."
Embora acredite que as chances de um regresso brechtiano se concentram na poesia do escritor alemão, Leandro Konder também não esquece a moral política, a revolta contra a injustiça.
``Não tem sentido resgatar certos aspectos da perspectiva política de Brecht, que é uma perspectiva envelhecida", diz o escritor brasileiro. ``Mas o impulso moral subjacente às posições políticas que assumiu confere à obra dele uma vitalidade muito grande."
Denunciando alguma esperança, Konder chega a dizer que, no futuro, ``em alguns momentos vai ser fácil perceber que, nas circunstâncias em que Brecht viveu, houve instantes em que era muito difícil não ser comunista".

Período crepuscular
Por estranho que seja, também o alemão Klaus Pohl diz que foi muito influenciado por Brecht. Chega até a escolher o melhor de Brecht, que está nas peças, mas não na dramaturgia.
``Ele é um grande lírico e há tantas letras nas peças. É o que eu gosto", diz Pohl, sublinhando porém as diferenças entre as suas peças, que considera realistas, e o teatro épico brechtiano.
Para Pohl, é o Bertolt Brecht lírico que vai regressar, se é que vai. Para Leandro Konder, é o Bertolt Brecht das poesias e não necessariamente o do palco, das grandes peças, como ``Galileu" (1937-39) e ``Mãe Coragem" (1938-39).
``A poesia é difícil de ser apreciada mais amplamente, porque recriar em português a simplicidade, a força, é muito difícil. Mas ela é tão boa. É um dos pontos fortes da minha aposta na revalorização da obra dele."
Revalorização que pode já estar acontecendo, no teatro. Kushner, por exemplo, lembra que Brecht é mais produzido do que qualquer outro dramaturgo de língua germânica, ``eu acho".
Klaus Pohl lembra que, na Alemanha, ``por todo lado estão produzindo `A Ópera de Três Vinténs' (1928), em Hamburgo, em Berlim, no Deutsches Theater, que foi de Max Reinhardt nos anos 20. São grandes produções. É a peça brechtiana de maior sucesso, outra vez. Sempre foi assim".
Ainda é muito incerto, mas talvez esteja mesmo para terminar uma primeira volta na espiral histórica de que falava Roland Barthes, na ``bela imagem" que já serviu a outros escritores, em outros tempos.
``Shakespeare passou períodos em que ele esteve esquecido", lembra Leandro Konder. ``Depois foi resgatado, recuperado. Eu acho que isso acontece com vários autores. Tem acontecido. Tem uns que somem e não voltam. Mas tem outros que atravessam, assim, períodos crepusculares e depois reaparecem em cena."

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