São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

`Segunda geração' da guerra supera ódios

ANNICK COJEAN
DO ``LE MONDE"

Um dia, filhos de nazistas e filhos de suas vítimas se encontraram. Um diálogo corajoso e ousado teve início, apesar dos sarcasmos e do espanto de alguns, que o qualificaram de indecente.
Como se alguma influência maligna ainda ameaçasse uma aproximação desse tipo. Foi desencadeado um processo que não se sabe aonde irá levar. Não se trata de perdão ou de esquecimento, nem sequer de reconciliação. Simplesmente, de pôr fim ao ódio.
O processo foi deslanchado pelo psicólogo israelense Dan Bar-On, cujos pais deixaram a Alemanha em tempo de escapar do inferno e de conservar, segundo ele, ``uma visão positiva da humanidade".
Um profissional que se confronta todos os dias com o genocídio e com uma ``cultura das vítimas", num país onde mais de um quarto da população foi direta ou indiretamente afetada por ele.
Mas Dan Bar-On não herdou os antolhos e o olhar maniqueísta sobre o mundo que opõe carrascos e vítimas, sem nuances.
Para avançar no conhecimento do Holocausto e de suas sequelas, falta, segundo ele, uma peça essencial do quebra-cabeças: a visão alemã.
Por essa razão, ele procurou e entrevistou pessoas cujos pais haviam tomado parte na perseguição e no extermínio dos judeus.
Depois, com prudência, ele os colocou em contato. Um grupo se reuniu durante quase três anos. E, durante uma dessas reuniões, ele propôs o impensável: um encontro com filhos de vítimas.
``Eles já haviam amadurecido", diz Dan Bar-On. ``Haviam refletido muito sobre seu passado, suas raízes, noções de culpa e de responsabilidade alemãs. Para progredirem, era preciso que se encontrassem com o outro lado."
Foi nos EUA que o ``outro lado" se dispôs mais rapidamente a participar. Alguns filhos de judeus que escaparam e que, depois da guerra, emigraram para os EUA haviam saído de seu isolamento para formar grupos de diálogo.
Depois, alguns começaram a se reunir com alemães que viviam em suas cidades -Boston, Nova York ou Los Angeles.
Dan Bar-On convidou quatro deles a se encontrar com filhos de grandes criminosos nazistas, durante um seminário na universidade alemã de Wuppertal.
Numa manhã de junho de 1992, uma pequena delegação de judeus (alguns vindos de Israel) entrou numa sala do campus.
Os alemães esperavam, perfilados do outro lado da sala. Alguns se adiantaram espontaneamente, e Julie Goshalck apertou a mão de um homem alto e magro cujo nome a fez gelar: Martin Bormann, filho.
Eles se sentaram em círculo, trocaram alguns olhares tímidos. Durante três ou quatro dias, cada um contou sua história.
Um jovem médico de Boston, cuja mãe havia sido encontrada quase morta numa montanha de cadáveres, no dia da libertação de Bergen-Belsen, ficou estupefato.
Uma jovem contou que só aos 19 anos descobriu que seu pai, longe de ser um simples policial, como ela imaginara, havia na realidade comandado um dos ``Einsatzgruppen", os grupos móveis nazistas, e que havia sido responsável pela execução de dezenas de milhares de judeus.
Outra, nascida durante a guerra, contou que passara sua infância esperando o retorno de seu papai simpático, ``desaparecido" em combate, para o qual tinha o hábito de guardar uma fatia de bolo, caso ele voltasse inesperadamente.
Aos 15 anos, ela descobriu, por acaso, que seu pai estava morto. A partir desse momento, chocou-se com o silêncio de sua família e passou a procurar documentos, livros, testemunhos que pudessem lhe dar informações sobre ele.
Quanto mais descobria, mais aumentava sua angústia. Ela buscava desesperadamente um indício, um único sequer, que pudesse mostrar que seu pai não tinha sido um demônio por inteiro. Mas acabou abandonando a busca.
E, quando o grupo lhe perguntou o que ela sentira ao assistir o filme que mostrou o enforcamento de seu pai, em 1946, ela declarou com voz triste que tinha sido uma morte rápida demais, levando em conta o sofrimento que ele infligiu a dezenas de milhares de judeus.
Numa sexta-feira à noite, 16 deles jantaram juntos, numa mesa comprida do restaurante universitário, iluminado por velas, como no ritual judaico do Shabbat (Sábado). Todos sentiram que o encontro os havia transformado.
Houve outros encontros, e existem outros grupos. Juntos, filhos de vítimas e filhos de criminosos nazistas visitaram Auschwitz, Dachau, o museu do Holocausto de Washington, o museu de Yad Vashem, em Jerusalém.
Não havia câmeras -a intenção não era realizar uma cerimônia a ser lembrada, nem uma demonstração de reconciliação para ser assistida por outros. Era um gesto íntimo e doloroso, necessário.
A matéria-prima de que se trata é penosa demais para suportar artifícios. ``Eles" queriam estar juntos. Como disse uma jovem alemã, apenas juntos é que podiam "abrir a caixa preta".
Hoje, Anna Smulowitz sorri do pavor que sentiu no primeiro encontro. Quando, no avião, percebeu que a haviam colocado ao lado de um jovem alemão "de aparência tão perfeitamente ariana!", Anna -de cabelos escuros cacheados e formas generosas- entrou em pânico e inventou uma repentina alergia às cadeiras do corredor.
Lucila N., nascida na Argentina de pais sobreviventes, temia pura e simplesmente que uma bomba colocada em represália a uma reunião sacrílega causasse sua morte.
Mas isso não era nada em comparação com os temores de alguns alemães ao porem os pés em Israel pela primeira vez: alguns temiam ser identificados e segregados. Outros temiam a possibilidade de um atentado terrorista.
Era preciso, também, superar um sentimento de traição com relação a suas famílias.
"Será que estou traindo a confiança de meu pai, sobrevivente de Auschwitz, e de minha mãe, que passou a guerra inteira escondida, ao encontrar filhos do inimigo?" perguntava-se Sally B.
Mas ela refletia: não, aqueles que queriam falar com ela só podiam ser "bons alemães. Mesmo assim, prometeu a si mesma guardar distância e nunca deixá-los acreditar que "exista alguma possibilidade de perdoar o passado."
Apesar de tudo isso, a experiência tem seus limites. Um grupo que fazia sua segunda reunião em Stuttgart esteve a ponto de explodir quando os integrantes judeus descobriram que Otto Duscheleit, o senhor idoso e um pouco tímido que lhes havia servido chá, era um antigo integrante da SS, divisão especial nazista.
Essas conexões exigem sacrifícios. Quando seus participantes as trazem a público, eles se expõem a agressões. Uma mesa-redonda pública promovida em Israel revelou-se implacável em relação aos filhos dos nazistas.
Anna, que teve a audácia de contar à sua família nos EUA sobre o encontro pacificador que tivera com Otto, foi insultada repetidamente: ``Como você ousou?". Alguém pintou suásticas nos vestiários da escola onde leciona.
Apesar disso, nenhum deles cogita interromper o processo. Alguns chegam a afirmar que "o grupo" se transformou na coisa mais importante de suas vidas.
Alguns integrantes se contentariam apenas com esses encontros de amizade, que lhes deram uma paz que nenhuma terapia havia conseguido oferecer. Outros querem ir mais longe, mais rápido, e apressam o passo.
"Não há nenhum programa planejado", diz Dan Bar-On, que dá continuidade à experiência com seu primeiro grupo. "Não estamos fazendo uma cruzada. Não sou político. Mas alguma coisa nasceu dessa empreitada muito arriscada. Uma força, uma esperança, a coragem de falar."

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: EM RESUMO
Próximo Texto: `Temos mais pontos comuns que diferenças'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.