São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Rickson a força vem aí

ANA BAN

Pergunte a qualquer um que entenda de jiu-jítsu quem é o lutador mais técnico, mais rápido ou mais forte do mundo. A resposta será sempre a mesma: Rickson Gracie,430 lutas, 430 vitórias. Em Los Angeles há seis anos, já treinou o ator Chuck Norris, agentes do FBI e esquadrões antidroga. Em abril venceu pela segunda vez o torneio Japan Open Vale Tudo em que nocauteou três campeões locais de "shoot-wrestling" chega nesta terça, 4, para mostrar o que é perfeição a cerca de 400 seguidores da modalidade em São Paulo (leia na página seguinte). Depois, no Rio, o atleta termina de filmar documentário sobre sua vida.
"Ele é um fenômeno", resume Rolker, 30, um de seus nove irmãos, todos iniciados em jiu-jítsu.
Com mais ou menos 35 anos (a idade ele não conta), Rickson ganhou todos os títulos possíveis no Brasil e embolsou US$ 120 mil só pelos dois campeonatos no Japão, em que se enfrentam lutadores de qualquer modalidade.

Paciência e generosidade
Rickson é mito entre fãs das artes marciais e praticantes do esporte - cerca de 2 mil em São Paulo e 20 mil no Rio. Não é só à força e aos títulos que este lutador de 1,78 m e 85 quilos deve tanta admiração.
Segundo Robson, o star da família alia paciência e generosidade -princípios básicos do jiu-jítsu- à excelência técnica: "Ele neutraliza adversários sem causar-lhes danos físicos. Se quisesse, poderia ser muito violento e massacrar os oponentes, mas não o faz.
A maior vantagem de Rickson é que, pertencente à categoria peso médio, consegue ter a mesma rapidez de um peso leve e a mesma força de um peso pesado. Tudo graças à técnica Gracie.

Coisa de família
O lutador passou no vestibular para educação física, mas não frequentou nenhuma aula: "Não escolhi o que ia fazer. Sou uma sequência do trabalho feito pelo meu pai".
Rickson é hoje o herói mais forte de uma espécie de saga familiar. Introdutores do jiu-jitsu no Brasil, os Gracie são como missionários desse esporte, imbatíveis há 70 anos.
Tudo começou por volta de 1915, quando um campeão japonês, Mitsuyo Maeda (1880-1941) -conhecido como Conde Koma-, foi morar em Belém, no Pará.
Para praticar a boa vizinhança, ensinou sua arte aos cinco filhos de Gastão Gracie: Carlos, Oswaldo, Gastão Filho, Jorge e Hélio.
Os que melhor desenvolveram foram Carlos (1902-1994), o mais velho, e o caçula Hélio, pai de Rickson, praticante até hoje, aos 82. São os difusores do jiu-jítsu no Brasil, que ganhou força em 1925, quando os irmãos se mudaram para o Rio. Carlos é considerado o introdutor da luta e Hélio, seu melhor executor.
Entre as décadas de 30 e 50, Hélio Gracie assombrou o país derrotando todo mundo que surgia pela frente, especialmente mestres de outras modalidades.
Pesava 60 quilos e conseguia derrotar adversários de qualquer tamanho. Foi ele quem desenvolveu as técnicas de alavanca -para usar o peso do adversário contra ele mesmo.
Além disso, a dupla Carlos e Hélio, fundadora da federação fluminense, em 1965, também inventou todas as regras e a pontuação que regem o esporte no Brasil.
A família Gracie é lenda no Rio desde os anos 50. A tradição encantou o fotógrafo norte-americano Bruce Weber, conhecido por seus nus eróticos masculinos e campanhas publicitárias da Calvin Klein.
Em 86, Weber retratava personalidades cariocas quando conheceu Rickson. Dedicou aos Gracie 37 das 204 páginas de seu livro "O Rio de Janeiro". "Gosto do trabalho. A exposição da minha imagem foi muito importante naquele momento. Sou grato a ele", diz Rickson.

Monopólio vermelho
Como homenagem, reserva de mercado ou " critério", segundo o patriarca Hélio Gracie, ficou decidido que, no país, ninguém além dos cinco irmãos da primeira geração jiu-jítsu da família Gracie receberá a faixa vermelha 10.o grau. Que, aliás, ele despreza: "Estão dando faixa vermelha para quem não merece. Por isso, quando estou no Brasil, uso a faixa azul (segunda graduação, que alunos comuns alcançam em um ano).
"Se fui eu que inventei o negócio, é óbvio que ninguém pode se igualar a mim, gaba-se Hélio Gracie. E diz mais: "Hoje, o Rickson é o lutador mais eficiente do mundo, ninguém poderá se comparar a ele, só meus outros filhos, quando atingirem a idade e a forma física ideais. E meus netos só serão tão bons assim se os pais deles tiverem a mesma dedicação e atenção que eu tive". É a saga. Quem quiser desafiá-la que se apresente bem treinado.
Os filhos de Hélio subiam no tatame assim que aprendiam a andar. Com 2 anos, já faziam pequenas demonstrações, como lembra Rorion, o integrante do clã que exportou a técnica para os EUA.

Ilha da fantasia
Na década de 80, o jiu-jítsu Gracie começou a ganhar o mundo. O advogado Rorion, 43, trocou o Brasil pelos EUA e fez a via sacra completa do imigrante: cozinha, faxina etc.
Carimbado, como os irmãos, com um tipo "exótico", fez pontas em TV. Figurou em seriados como "Casal Vinte", "A Ilha da Fantasia" e "As Panteras". Acabou ensinando ao ator Mel Gibson os movimentos do jiu-jítsu para as cenas de luta de "Máquina Mortífera" (1987).
A partir daí ganhou mídia. A garagem onde ministrava aulas informais ficou pequena para o contingente de alunos. Rorion pôde, então, cumprir o que diz considerar sua "missão divina": mostrar as técnicas da família ao mundo.
Chamou os irmãos para ajudar. O primeiro foi Royce, seguido por Rickson, que acabou partindo para a carreira solo.
Em 1990, Rorion montou a primeira academia Gracie no exterior, em Torrance, Califórnia. Hoje, há pelo menos mais três naquele Estado que ensinam a técnica brasileira (aqui incluída a de Rickson). Os golpes precisos dos Gracie estão também no Havaí. Nova York é a próxima cidade a entrar na zona de influência da família.
"No Brasil, só há um tipo de jiu-jítsu, que vem dos Gracie. Nos Estados Unidos tem uns 30 tipos para escolher", informa Rickson. "Mas nenhum desses tipos pode ser usado em situações reais de defesa pessoal, é mais um hobby. O jiu-jítsu Gracie ganha adeptos por ser muito eficiente."

Vale tudo
A eficiência é comprovada nas disputas tipo vale tudo -onde diferentes lutas se enfrentam (caratê, kickboxing, sumô, judô, boxe etc).
As regras são simples: só não pode morder, puxar o cabelo e atacar os olhos. A luta acaba quando alguém desmaia ou pede para parar.
São oito participantes por evento. Quem perde, está fora. Tudo acontece no mesmo dia, com intervalos de cerca de meia hora entre cada luta.
O primeiro campeonato desse tipo foi o norte-americano Ultimate Fighting Championship, criado por Rorion.
No ano passado, surgiu o Japan Open Vale Tudo. O campeão do primeiro é Royce Gracie, 28. No Japão, advinhe quem venceu? Rickson Gracie.
Rorion escolheu Royce para representar os Gracie nos EUA porque "ele parece um cara normal, não tem o físico avantajado. Ganhando, impressiona mais", explica o "erre" da família que luta mais na arena comercial.
"É interessante colocar diferentes lutas se enfrentando para ver qual é a mais eficiente", avalia Rickson. "As chances do jiu-jítsu vencer são muito boas, porque é uma arte completa. É brincadeira enfrentar um boxeador: é só transferir a luta para o chão que o cara se perde."
É isso que ele mostra no Japan Open Vale Tudo, com nome assim mesmo, em português.
Impressionados com a técnica de Rickson, e baseados no Ultimate Fighting, japoneses o convidaram para um campeonato. Ao ler o regulamento, respondeu: "Com tanta regra, não posso participar".
Tudo foi reformulado, eliminaram, por exemplo, a possível intervenção do juiz no meio da luta. A competição ficou mais solta e Rickson reinou, absoluto.
É só assistir a um desses campeonatos para entender o que os Gracie querem dizer com técnica -o Ultimate Fighting é exibido pelo SporTV, canal distribuído pelo sistema de TV por assinatura Net Brasil. Entre outros lutadores, o sangue jorra. Mas quando um Gracie entra na arena, seguido pelos irmãos em fila indiana - o de trás com a mão no ombro do da frente - a luta acaba em menos de um minuto. Limpa.
Encerrado o combate, os irmãos se beijam. E beijam o adversário.

"Um monstro"
Os treinos para os campeonatos são todos feitos em família. O "técnico" de Rickson é o irmão Roiler, 29. "Como é que eu posso ser técnico do melhor lutador do mundo? Meu trabalho é mais no sentido de dar a dica certa, de pensar junto", explica.
Rickson também ajuda no treinamento de Royce e acha importante que existam diferentes campeonatos para outros Gracie poderem mostrar seu conhecimento. Para Royce, Rickson "é um irmão que sempre está lá para o que der e vier. Ele é o melhor porque consegue se entender com a luta. É invencível, um monstro."
A administração da carreira de Rickson também fica em casa. Sua mulher, Kim, é sua empresária. "Nós somos um time, não posso tomar decisões profissionais sozinho.
Kim é especializada no que chama de "artes da cura" -como ioga e acupuntura. Influências tão alternativas não conflitam com a função de empresária: "Nós não levamos os negócios como uma coisa comercial pura. Escolhemos de quais eventos participar e como tocar nossa academia da forma que achamos correta, sem prejudicar os outros e sem ganância", explica.
Muito voltada para o lado da espiritualidade, ela conta que Rickson entrou no seu esquema. "Essa coisa de não dizer a idade não é vaidade, mas sim porque acreditamos no crescimento espiritual. Para alguns, há um declínio com a idade. Mas, se você quiser, nunca pára de crescer espiritualmente", defende.
Kim induziu Rickson ao caminho espiritual, mas diz não impor aos quatro filhos o jiu-jítsu ou a filosofia de vida do casal. "Faço questão que eles tenham chance de escolher. Mas parece natural que eles queiram seguir o que fazemos. Meu filho mais velho, Rockson, já acompanha o pai nos campeonatos do Japão".

Galã
A próxima empreitada de Rickson é o lançamento de um filme produzido nos EUA pela empresa Propaganda Films. "Será um documentário sobre a minha vida, com cenas da academia, do vale tudo no Japão e do Rio de Janeiro, com os meus amigos e a minha família. Depois do workshop em São Paulo, passo duas semanas no Rio gravando as últimas cenas", conta.
Esse filme deverá ser exibido nos cinemas dos EUA ainda este ano. Rickson também pensa em atuar em filmes de ação, nos quais o jiu-jítsu, claro, será sua arma mortal.
Mas desmente os que o "vendem como um novo Van Damme, o galã atarracado e truculento de "O Grande Dragão Branco". "Procuro me espelhar em mim mesmo e passar experiências reais para quem vai me assistir."
Não são só os campeões de tela que ele peita. Seu maior desafio continua sem resposta: quer entrar no ringue com o peso pesado Mike Tyson. "Sem dúvida alguma, ele é o melhor boxeador do mundo"!, admite, "mas enquanto ele continuar dizendo que é o melhor lutador, estou pronto a desafiá-lo. Tenho condições de acabar com ele rápido". E mostrar quem é o melhor.

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