São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

No princípio era a matéria

LUIZ RENATO MARTINS

Auguste Rodin
Vários autores Tradução: Irene Paternot
Pinacoteca do Estado, São Paulo, 7/6 a 13/7
Catálogo, Livraria Francisco Alves Editora, 141 págs. R$ 45,00

A obra de Rodin (1840-1917) enraiza-se no materialismo do século 19, que, em vertentes distintas, destaca a produtividade autônoma do corpo. Mas, no vasto leque do anti-idealismo, qual é o posto preciso de Rodin?
O catálogo da mostra Rodin (Pinacoteca do Estado de São Paulo, 7/6 a 13/7) diz, sumariamente, que o autor ``recebe (numa viagem à Itália em 1875) a revelação da escultura de Michelangelo, cuja influência o marcará para sempre". Noção que supõe um mito originário e, se vê alguma analogia na eloquência dos volumes, cobre contrastes de fundo entre os corpos grandiosos e contorcidos do criador renascentista -tributário da dicotomia cristã entre carne e espírito- e o valor da corporeidade no caso moderno, grandiosa, decerto, mas laica e de fundo imanente.
De fato, o anti-idealismo de Rodin vem no embate com o léxico neoclássico -sem segredos para Rodin, auxiliar de 1870 a 1875 em grandes obras decorativas em Bruxelas. Forma-se, pois, em oposição a dois cânones neoclássicos: a transparência e a idealidade da matéria e a profundidade correlata das imagens, disposta nos relevos narrativos eternizantes, de espírito restaurador.
Concretamente, Rodin transgride a ordem neoclássica pela via do naturalismo. Antevista em ``O Homem do Nariz Quebrado" (1864) -que o Salão recusa- e nítida desde ``A Idade do Bronze" (1876) -que alude à guerra França-Prússia-, a crueza de Rodin, que conclui a fase belga e abre uma via sua, será tida como decalque ou plágio.
A obra de Rodin neste trajeto pertence certamente ao seu tempo. Coexiste com a fotografia (inventada ao redor de 1820-40) e com idéias como o fisiognomismo na ciência e o naturalismo de Zola. E se confronta com o uso em série do corpo na indústria.
A desorientação do catálogo, sem fio condutor, mal deixa entrever tal quadro. E quando trata, por exemplo, do interesse de Rodin pela técnica nascente de reprodução de imagens e da cooperação que obtém de fotógrafos, o faz como se a relação fosse restrita a um apêndice documental das fases da obra. Porém, o recurso ostensivo e recorrente a composições modulares, repetindo figuras em posições diferentes -como depois se tornou usual na arte moderna, especialmente na de raiz construtiva-, mostra que o vínculo de suas esculturas com a indústria e a idéia de reprodução é intrínseco. Nega assim o valor aurático do original e afirma decididamente a era das obras reprodutíveis.
Do naturalismo inicial à liberdade expressiva, elaborada nos 40 anos seguintes, a diretriz imanentista de Rodin põe-se de muitos modos: na figuração de movimentos gratuitos, signos da espontaneidade corporal, e, nos retratos, pela busca de sínteses expressivas -precedidas de uma investigação dos traços físicos e dos hábitos; no teor compacto das obras, destacando a opacidade da matéria, salientada em sua imagem, densa e áspera, no pedestal como solo originário dos trabalhos; no inacabamento das peças que põem à vista as marcas do fazer etc.
Em suma, as noções de reflexividade do corpo e da arte -como forma de reflexão por excelência do corpo; este visto, pois, como matéria reflexiva, gerador espontâneo de produtividade ou potência ativa-, alimentam a poética de Rodin. Assim, no ``Pensador" -projeção declarada da figura do autor frente as suas obras-, a forma circular (e não ascensional como na metafísica racionalista) da composição e mais a crispação dos pés como foco de tensão física, visível ainda nas pernas da figura -de acordo com palavras do próprio Rodin, que também se refere à ``lentidão do pensamento no cérebro" (pág. 56)-, denotam a diretriz materialista.
Rodin, na sua estratégia de ocupação dos espaços públicos e institucionais, através de monumentos e outras formas de ação, também antecipou as intervenções de escala ``midiática", hoje usuais. O que lhe possibilitou legar em vida ao Estado francês a sua obra e negociar com este a abertura do Museu Rodin.
A mostra Rodin deixa entrever os dois lados destas tantas moedas. Assim, o empenho oficial garante a presença no Brasil de obras capitais, a magnitude do evento e de sua recepção ampla em museus do centro urbano, mais acessíveis à maioria da população.
Entretanto, o catálogo, descurado ao absurdo, revela ausência de atenção especializada. As imagens discrepam umas das outras, quanto ao fundo e à iluminação; o uso aberrante da luz distorce todo aspecto original dos trabalhos. O que destoa das belas fotos da coleção de Rodin e da analítica da luz do Impressionismo -que a superfície nuançada de algumas esculturas, como ``Balzac", não ignora. Os textos, trechos de procedência díspar, não trazem autoria; o arranjo gráfico não os qualifica ou hierarquiza. Há fotos com legenda errada. Faltam oito fotos arroladas. Sobram seis páginas de ``mensagens" oficiais, com frases sem nexo e sem revisão, onde surgem afirmações insólitas como: ``Temos certeza do notável sucesso (...) junto aos amantes e estudantes de arte (...) artistas e deficientes (sic) de visão". E o agradecimento ao ``Museu Rodin, organizador da mostra e sem o qual ela não teria sido possível".

ONDE ENCONTRAR:
Pinacoteca do Estado de São Paulo (av. Tiradentes, 141, Luz, CEP 01101-010, tel.: 011 227-6329, fax: 011 228-9637, São Paulo) e no Museu Nacional de Belas Artes (av. Rio Branco, 191, CEP 22040-008, tel.: 021 240-0160, fax: 021 262-6067

Texto Anterior: Recepção de Bakhtin
Próximo Texto: O lápis de Glauber
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.