São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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O lápis de Glauber

LÚCIA NAGIB

Deus e o Diabo na Terra do Sol
José Carlos Avellar Rocco, 116 págs. R$ 12,50

Glauber Rocha e o cinema latino-americano
Geraldo Sarno Rio Filme/CIEC/Sec. Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, 112 págs. R$ 10,00.

O volume ``Deus e o Diabo na Terra do Sol", de José Carlos Avellar faz parte das contribuições brasileiras que a Rocco pretende adicionar à série sobre os melhores filmes do mundo, originalmente editada pelo British Film Institute de Londres. Cada volume deve apresentar ``impressões pessoais" sobre o filme escolhido, acrescentando-se ainda ``detalhes da produção e uma filmografia minuciosa, acompanhada de notas e bibliografia".
Avellar ateve-se decididamente pelo menos à primeira proposição, apresentando uma visão de caráter pessoal ou mesmo, por assim dizer, co-autoral de ``Deus e o Diabo", que, se não é o melhor filme brasileiro de todos os tempos, com certeza está entre os mais comentados, aqui e no exterior. Como se estivesse reinventando uma obra, Avellar deixou de lado tudo que já foi escrito sobre ela, inclusive clássicos como o livro ``Sertão Mar", de Ismail Xavier, até hoje a análise mais acurada e completa do filme de Glauber e de sua chamada ``estética da fome".
Preferiu lançar mão quase exclusivamente de depoimentos do próprio Glauber ou daqueles que participaram das filmagens, via de regra extraídos do volume ``Deus e o Diabo na Terra do Sol", uma coletânea de materiais sobre o filme editada pela Civilização Brasileira em 1965.
A ausência da bibliografia, prometida na quarta capa, provavelmente se deve a essa opção metodológica. Em função dela, as vozes dos dois autores, o do filme e o do livro, se entrelaçam de tal modo que se transformam num uníssono, no qual o tom glauberiano francamente prevalece. Aliás, as citações das falas de Glauber, em entrevistas, depoimentos ou textos de próprio punho, compõem a maior parte do livro.
Mas Avellar não faz segredo do caminho escolhido. Já nas primeiras páginas, define o que entende por análise de filme: ``A análise de um filme (...) não é uma tentativa de reconstituí-lo com precisão, de contá-lo resumidamente para o leitor. Analisar é anotar as características desta outra imagem do filme, a que não aparece na tela durante a projeção, a que construímos com ele durante e depois da projeção --e às vezes antes".
O conceito de espectador como co-autor de uma obra foi um dos pontos programáticos do cinema novo do mundo inteiro, nos anos 60, o que se manifesta também nesse filme de 1963. Rejeitava-se o narrador ilusionista e autoritário, que impunha um único ponto de vista. Propunha-se, ao contrário, uma obra fragmentária, auto-reflexiva, ``porosa", dotada de pontos de vista variados, exigindo a participação intelectual do espectador para completar o seu sentido.
Mas não é certamente dessa forma que Avellar vê o problema. Mesmo porque sua proposta de pensamento cinematográfico se refere ao público de hoje, não ao politicamente engajado de 30 anos atrás. Em suma, a co-autoria como processo da consciência dá lugar, no livro, à pura relação de prazer.
Avellar explica-se citando um poema de Manoel de Barros, ``Seis ou Treze Coisas que Eu Aprendi Sozinho": ``'Todas essas coisas têm soberba desimportância científica -como andar de costas'. Como o poeta, o espectador procura andar de costas, voltar ao filme, reinventar a imagem. (...) Depois da projeção deseja prolongar o prazer da visão, pensar em palavras o que no filme pensou em imagens. Pensar com os sentimentos, porque tudo isso se faz com soberba desimportância científica".
A postura anticientífica, à qual evidentemente se liga o desprezo pelas análises já existentes, poderia sugerir uma mera crítica impressionista ou de conteúdo. Não é assim, porém, que o livro se desenvolve. A certa altura, chega-se mesmo a uma nova teoria de interpretação de ``Deus e o Diabo" que toma por base os desenhos -pouco conhecidos- de Glauber.
Revelam-se fatos curiosos, como o de que Glauber, desde os nove anos de idade, costumava desenhar filmes inteiros, quadro a quadro, nas bobinas da máquina registradora da loja onde sua mãe trabalhava. A partir desse detalhe e dos inúmeros esboços que o cineasta fez ao longo da vida, Avellar localiza o desenho na origem da imagem cinematográfica glauberiana. Em relação a ``Deus e o Diabo", destacam-se as relações que desenvolve entre os movimentos de câmera, particularmente durante a famosa dança de Corisco na caatinga, e o impulso do lápis que rabisca nervosamente o papel em branco.
O desenho e a pintura encontram-se, como se sabe, na origem das imagens de muitos cineastas, dos quais Eisenstein, Kurosawa e Fellini são apenas alguns dos exemplos ilustres. Doravante Glauber poderá ser também inserido nesse filão, depois de ``Deus e o Diabo" ter sido fartamente estudado em relação à música (a de Villa-Lobos e a dos cantadores nordestinos) e ao teatro (em especial, o de Brecht).
Esse mesmo princípio, da câmera como lápis, revela-se pouco produtivo na análise do personagem de Antônio das Mortes. Ao sustentar a tese de que esse personagem, contraditório e ambíguo, teria sido ``escrito com a câmera" durante as filmagens e de que ``hoje talvez seja possível ver Antônio das Mortes como personagem que não se esgota nas imagens em que vive", ligando-o a personagens anteriores e posteriores do cineasta, talvez não devesse ter desconsiderado a brilhante caracterização feita por Jean-Claude Bernardet nos idos de 1967, em ``Brasil em Tempo de Cinema".
Bernardet colocara Antônio das Mortes como cristalização de uma atitude recorrente no Cinema Novo brasileiro, identificando-o com uma representação da classe média progressista: ``Roni (``A Grande Feira"), Valente (``Sol sobre a Lama"), Firmino (``Barravento"), Tônio (``Bahia de Todos os Santos") são seus ancestrais e, com ele, os bastardos do cinema brasileiro". Bernardet também já apontara o modo como o movimento de cena compõe o caráter contraditório do personagem: ``Quando Antônio das Mortes, antes de matar Corisco, anda em ziguezague para escapar às balas, a direção concretiza com grande força a contradição do personagem".
A visão de Avellar da obra de Glauber se apega à delicadeza das composições e do movimento, levando o leitor a penetrar suavemente no universo convulso do cineasta, como numa conversa a dois. No entanto, uma contextualização mais ampla -histórica e geograficamente- do filme talvez orientasse melhor o leitor. Pois ``Deus e o Diabo", embora permaneça atual, encontra-se intimamente ligado às esperanças revolucionárias dos anos 60, estabelecendo um intenso diálogo com as cinematografias e artes mundiais de então.

Outro livro recém-lançado, escrito pelo veterano cineasta Geraldo Sarno, também tematiza a obra do cineasta baiano. Como ressalta o autor, ``Glauber Rocha e o Cinema Latino-Americano" configura antes as bases iniciais de uma pesquisa, do que propriamente um livro pronto. De todo modo, tem o mérito de iniciar, com material valioso de primeira mão, a reflexão sobre a relação entre Glauber e os demais cineastas latino-americanos, principalmente os que, durante certo período, tiveram em Cuba um de seus eixos. De fato, embora amplamente reconhecida, permanece ainda pouco estudada a efêmera inserção que atingiu a cinematografia brasileira dos anos 60 no contexto latino-americano, possibilitada pela identidade do projeto político e pelo desejo comum de construção de cinematografias nacionais próprias.
O principal trunfo do livro é a transcrição de um texto inédito, escrito por Glauber em 1972 - durante sua permanência de um ano em Cuba -, dirigido ao ICAIC (Instituto Cubano del Arte y de la Industria Cinematograficos). Completam a edição um texto introdutório e um amplo quadro histórico elaborados por G. Sarno.
O texto de Glauber, espécie de prólogo a um projeto de filme que pretendia realizar em Cuba, é atípico dentro do conjunto de sua vasta obra escrita - embora não fuja ao seu gosto por provocações e polêmicas. Raramente Glauber terá sido tão radicalmente marxista e tão acriticamente adepto do jargão militante do qual aqui faz uso profuso: "imperialismo", "conformismo", "revisionismo", "reformismo", "pequeno-burguês", "alienação" são termos que martela com insistência. Nos veementes ataques ao imperialismo, chega ao exagero de condenar em bloco o cinema europeu, incluindo aí Resnais, Chris Marker, Truffaut, Godard e Bertolucci.
No entanto, mesmo o leitor desavisado desde logo percebe que Glauber está dirigindo-se a um público que reclama esse tipo de vocabulário. E, para os já familiarizados com a contundência glauberiana (e com a transitoriedade de suas ``ortodoxias" políticas), fica evidente que seus ataques se destinam, sobretudo, a forçar o surgimento, nos países latino-americanos, de cinematografias independentes, desvinculadas de qualquer tipo de filiação, seja ao cinema americano ou ao europeu.
Geraldo Sarno, porém, tira desse texto cubano conclusões mais abrangentes, que se veriam corroboradas por outras afirmações esparsas de Glauber, como esta, extraída de uma carta a Alfredo Guevara: ```Vidas Secas', `Os Fuzis', 'Ganga Zumba', 'Deus e o Diabo na Terra do Sol' foram realizados sob sabotagem cultural do janguismo. As esquerdas 'revolucionárias' do momento defendiam a chanchada, o esclerosado neo-realismo, o populismo e outras alienações provocadas pela colonização cultural". Essas breves indicações servem a Sarno para compor a curiosa tese de que Glauber, ao longo dos anos 60, teria militado contra o neo-realismo italiano, dando preferência à épica eisensteiniana.
Tal conclusão parece no mínimo apressada. Afinal, toda a bibliografia do próprio Glauber, ao longo dos anos 60 e depois, para além da admiração dedicada a Eisenstein, prova justamente o quanto as descobertas e invenções do cinema italiano do pós-guerra foram fundamentais para sua obra. Rossellini e Visconti eram figuras idolatradas, constituindo fontes assumidas de ``Deus e o Diabo na Terra do Sol" (veja-se, por exemplo, debate com Glauber Rocha no livro ``Deus e o Diabo na Terra do Sol", Civilização Brasileira, 1965). Os textos de Glauber reunidos em ``Revolução do Cinema Novo" e em ``O Século do Cinema" comprovam, também, fartamente, esse fato - embora sempre deixando claro sua independência com relação a qualquer modelo alheio.
Sarno formula ainda o que considera ``uma outra tese ousada" de seu estudo, segundo a qual ``o debate estético que não ocorreu na América Latina, o diálogo que Glauber não conseguiu estabelecer com os cineastas latino-americanos, ele o realizou com os franceses e italianos. Num momento com Godard, sobretudo, e num outro momento com Pasolini". Segundo creio, o equívoco desta segunda tese reside simplesmente na crença de sua novidade. Esse diálogo com os europeus é, na verdade, o mais reconhecido tanto pelo próprio Glauber (que filmou com Godard e teve contatos assíduos com Visconti, Bunuel e muitos outros europeus), quanto para todos os estudiosos de sua obra, desde os anos 60.
As teses de Sarno só adquirirão, de fato, o caráter de novidades se, na ampliação de sua pesquisa sobre as ligações de Glauber com os cineastas latino-americanos, ele recolocar o texto escrito para o ICAIC dentro dos limites de um contexto político específico e incluir em sua avaliação os férteis e provocativos ziguezagues do pensamento glauberiano.

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