São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Enredos da história

PETER BURKE

Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura
Hayden White Tradução: Alípio Correia de Franca Neto Edusp, 312 págs. R$ 27,00

Meu único pesar é que o autor não tenha desenvolvido sua principal descoberta e realizado uma análise textual mais cerrada, sobretudo de trabalhos como a ``História da Inglaterra" e a ``História da Prússia", mostrando assim mais precisamente como a narrativa consegue dar a impressão de comédia (manifestada sobretudo na escolha do historiador pelo momento de começar e terminar sua história).
Contudo, existem também fragilidades na estrutura de ``Meta-História". Por exemplo, a idéia de ``sátira" é bem mais vaga que a de comédia ou a de tragédia, e ainda não me convenci de que a sua descrição da ``Civilização do Renascimento na Itália", digamos, como sátira, acrescente algo à compreensão deste estudo célebre. ``Meta-História" é, sem dúvida, esquemático demais. Os quatro enredos, os quatro tropos, os quatro modos de explicação, as quatro atitudes (para não mencionar a escolha de quatro historiadores e de quatro filósofos) ajudam a dar a impressão de que os californianos vivem num mundo de tétrades pitagóricas. Num livro preocupado com enredos historiográficos, parece estranho omitir a epopéia, com a qual os críticos têm tão frequentemente comparado o trabalho do historiador. As histórias de Michelet, por exemplo, ou as de Thomas Carlyle (que escreveu sobre Oliver Cromwell, a ascensão da Prússia e a Revolução Francesa), têm certamente uma qualidade épica, assim como ``A Formação da Classe Operária Inglesa", de Thompson. White menciona a epopéia de tempos em tempos, mas brevemente: o problema é que não a pode admitir ao seu esquema sem estragar a simetria.
Novamente, parece um pouco arbitrário associar enredos específicos e mais ainda tropos específicos com figuras individuais de historiadores. Não vejo razão que impeça um determinado historiador de mudar de enredo conforme o assunto -epopéia para o surgimento de uma nação ou de uma classe social, tragédia para uma guerra civil ou para o declínio de um império e daí por diante. Na verdade, não vejo mesmo por que razão um único historiador não possa tentar representar e justapor num mesmo trabalho pontos de vista múltiplos, representando, por exemplo, a decadência do Império Britânico como tragédia para os britânicos, mas como epopéia para as novas nações que conseguiram se tornar independentes. Ali onde White vê o preto no branco, ou pelo menos representa seu universo histórico de modo claro e distinto, só consigo divisar contornos imprecisos e tonalidades esmaecidas. Na prática, resulta que o próprio White se vê compelido a esquecer ou a abandonar suas categorias de tempos em tempos e falar de comédia ou tragédia em Michelet, ironia em Tocqueville e daí por diante.
Há ainda outros problemas levantados pelo trabalho de White e nos quais não se empenha com seriedade. Por exemplo, os historiadores discutidos teriam ou não consciência da elaboração de seus enredos? Às vezes, White fala de arquétipos, como se os enredos constituíssem o inconsciente do historiador. Por outro lado, nota de passagem que as concepções de tragédia e comédia com que operam alguns dos historiadores em questão são bastante simples. Tal tópico certamente mereceria análise mais aprofundada.
Outra questão que White (como Frye) não discute adequadamente: categorias básicas como tragédia, comédia e outras são universais ou meramente ocidentais? Seria possível ou frutífero estudar, por exemplo, o trabalho do historiador árabe Ibn Khaldun ou do historiador chinês Ssu-ma-Ch'ien por meio de tais conceitos? É possível ou frutífero analisar o trabalho de historiadores recentes em termos whiteanos? Como já sugeri, ``epopéia" parece designação adequada para a elaboração do enredo de ``A Formação da Classe Operária...", de Thompson. Mas como entender ``O Mediterrâneo...", de Braudel? Não estou satisfeito com a tentativa de um dos discípulos de White em classificá-lo de ``sátira menipéia". E aqui surge a pergunta inevitável: em que consiste o próprio enredo de ``Meta-História"? Finalmente, a maior das perguntas: a questão da verdade. Seria a historiografia simplesmente uma forma de ficção ou trata-se de um gênero com regras próprias, inclusive as regras da evidência?
Já que os críticos de White o acusam de ignorar a distinção entre verdade e falsidade, vale lembrar as condições restritivas de suas teses, que, apesar de explícitas no texto, os mesmos críticos não conseguem ou não querem enxergar. White não nega que os historiadores se preocupem com dados e fontes, nem que as controvérsias entre historiadores, presentes nas páginas de revistas especializadas, redundem com frequência em questões referentes ao acontecimento. Ele apenas afirma que, ``além disso", historiadores levam em conta a retórica.
Dadas tais condições restritivas, o impacto causado por ``Meta-História", quando publicado pela primeira vez, pode parecer atualmente um tanto difícil de entender, sobretudo para leitores acostumados com as afirmações muito mais ousadas de um Jacques Derrida. Ao fim e ao cabo, a idéia de uma retórica da historiografia é, como se viu, antiga. Uma coisa é dizer que os historiadores usam ``ornamentos" retóricos ou cosméticos, outra, bem diferente, é afirmar, como White o fez, que a própria substância da escrita da história, da narrativa e da análise, é retórica. É ainda preciso reconhecer que o autor fala tão pouco acerca da questão da evidência, que a interpretação errônea de sua posição torna-se inevitável. Sua decisão foi, sem dúvida, deliberada, com vistas a provocar seus ex-colegas, e sua dupla reputação de guru e renegado é certamente um resultado dessa escolha. De qualquer modo, White perdeu uma grande oportunidade -a de analisar com maior profundidade e detalhe a relação entre conteúdo e forma, segundo as regras desse gênero literário particular que é a historiografia. Mesmo na perspectiva deliberadamente formalista que adotou, teria valido a pena discutir tal relação. A tarefa ainda está por fazer.
Vinte e dois anos após sua primeira edição, já é tempo de se tentar ir além de ``Meta-História". Por sua vez, tal empresa requer um maior número de historiadores, filósofos e críticos, que, fora do mundo de língua inglesa, discutam com seriedade os argumentos de White. A publicação de dois de seus livros em tradução portuguesa -mesmo que tardia- é portanto extremamente bem-vinda. Tanto mais que a tradução dos termos técnicos usados pelo autor foi feita com um cuidado escrupuloso e exemplar.

Texto Anterior: Enredos da história
Próximo Texto: A primazia do social
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.