São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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A primazia do social

RENATO JANINE RIBEIRO

Minha Formação
Joaquim Nabuco Paraula, 218 págs. R$ 26,00

Esse livro tem o mérito da boa autobiografia intelectual, ainda mais por falar-nos de Joaquim Nabuco, um dos principais militantes da causa mais nobre de nossa história: a luta pela emancipação dos escravos. É excelente que um intelectual e político assim reflita, à volta de seus 50 anos de idade, sobre uma vida movimentada por combate tão intenso. Infelizmente, o leitor de hoje há de sentir uma certa distância ante um discurso que se faz mais conservador, que -embora sem renegar a luta abolicionista- efetua da política uma abordagem que se afasta até mesmo da idéia democrática, que empolgara a mocidade do segundo Nabuco.
Não se trata, porém, de uma autobiografia pessoal, mas de uma meditação a posteriori de Nabuco sobre suas idéias e crenças, podendo assim haver descompasso entre opiniões sustentadas no fragor da luta redentora e juízos que se pretendem ponderados, emitidos 15 ou 20 anos depois. É sabido que o moço Nabuco, candidato em 1878 a seu primeiro mandato de deputado, teve a intuição de bradar no Recife que, ``para a democracia brasileira", a grande questão não era abolir a monarquia e sim a escravatura. A frase terá soado a provocação anti-republicana, na capital da última revolta contra o Império, a Revolução Praieira de 1848. Mas ela, se não iniciava, pelo menos sinalizava o começo do grande movimento que em nove anos derrocaria o regime escravagista.
Ora, refletindo duas décadas depois sobre aqueles dias, Nabuco não tem mais a simpatia da juventude pela democracia. Aos poucos, foi aceitando a importância da tradição. Isto se lê em todas as partes de ``Minha Formação". Aparece na crítica à Comuna de Paris e na relação das pessoas que frequentou na Europa, parte delas bem conservadoras, como um amigo do usurpador Miguel de Portugal. Ressurge na sua volta à fé católica, então o sinal de uma posição antiprogressista (embora o liberalismo tivesse sido ``anistiado", finalmente, pela Santa Sé). Vê-se no juízo sobre o pai, o senador Nabuco de Araújo, a quem havia biografado em ``Um Estadista do Império", chegando nosso autor a lamentar não ter seguido ``religiosamente" cada palavra do genitor. Está, ainda, em seu cotejo dos Estados Unidos com a Inglaterra, retomando lugares que, no passar do século, haviam-se tornado comuns na crítica à democracia e no elogio da monarquia constitucional.
O curioso é que ``Minha Formação" assim procure reduzir a imagem de um Nabuco radical, de alguém que teve na luta pelos escravos sua principal razão de ser e sentir -até porque nesta obra a opção monarquista parece ter maior peso ou, pelo menos, mais referências do que o próprio abolicionismo. Mas ele não deixa de dizer que, desde cedo, viu tudo na política gravitar em torno da escravidão e que considerou lutar por seu fim a boa obra, a prioridade máxima. De todo modo, convém notar alguns matizes, que valorizam nosso autor.
Primeiro, sua luta, embora se trave por meio de um suposto ``partido abolicionista" (que jamais terá a formalização ou a organicidade dos liberais ou conservadores), na verdade está acima dos partidos e até da própria nação. O bom combate é conduzido em nome da humanidade. São valores morais, éticos (que mais tarde abrirão lugar à conversão católica de Nabuco), que assim fazem que o Brasil seja, naquela hora, o chão escolhido para a melhor intervenção em favor de causas que excedem qualquer bairrismo.
Segundo, e por isso mesmo, Nabuco pode vozear forte desinteresse pela política e até, em certa medida, pela nacionalidade. Só lhe interessam causas que excedam os particularismos, sejam estes os das facções ou mesmo os das nações. No repúdio à Comuna de Paris (1871) ou na luta contra a escravatura, está assim em causa a civilização.
É isso, em terceiro lugar, que fará Nabuco deixar a política após a vitória de 1888. Somam-se aqui seu desgosto pelo arroz-com-feijão da política partidária e a gratidão, que partilhou com tantos abolicionistas, à Princesa Imperial, por ter sancionado a Lei Áurea. A República é vista como a revanche dos senhores de escravos -embora, para além da ``petite histoire" e das causas imediatas, ele também a condene por considerá-la menos eficaz que a monarquia parlamentar. Detenhamo-nos neste ponto.
Nabuco tinha 20 anos quando leu a ``Constituição Inglesa", de Bagehot, boa vacina contra o republicanismo presidencialista. Pôde então entender a lição de Montesquieu, retomada por não poucos conservadores no século 19: certos preconceitos, filosoficamente pouco consistentes, podem ser decisivos para preservar a sociedade. De modo, acrescenta Tocqueville no ``Antigo Regime e a Revolução", que apostar demais na razão em política significa tentar modelar a complexidade dos homens segundo esquemas, afinal de contas, apenas teóricos e por isso mesmo inadequados. Essa defesa de uma complexidade superior à razão será um dos grandes eixos da argumentação contrária à democracia, em especial no século 19. Nabuco assume-a, embora sem a levar ao extremo.
Finalmente, sobre a própria escravidão, tem Nabuco uma passagem que hoje causa estranheza, o belíssimo capítulo ``Massangana", em que elogia os negros por sua mansidão, por não se terem revoltado, e conta por que, aos 20 anos, ``formei a resolução de votar a minha vida, se assim me fosse dado, ao serviço da raça generosa entre todas, que a desigualdade da sua condição enternecia em vez de azedar e que por sua doçura no sofrimento emprestava até mesmo à opressão de que era vítima um reflexo de bondade..." (pág. 159).
Mas esse afastamento que entre nós e Nabuco se instaurou não impede dois pontos essenciais. Primeiro, devemos levar a sério sua ambição de ser antes um escritor do que um político, de se envolver somente em causas ligadas à civilização: por isso mesmo, não devemos patrulhá-lo em termos de um discurso que ele, explicitamente, repele ou pelo menos minimiza. Segundo, nada ofusca seu mérito de perceber -enquanto liberais, conservadores e republicanos representavam no palco da política tradicional- que faltava na casa de espetáculos uma parte substancial do público, os homens ainda não livres. ``Antes de discutir qual o melhor modo para um povo livre de governar-se a si mesmo, (a luta pela abolição) trata de tornar livre a esse povo", diz em ``O Abolicionismo". Essa sua convicção de que, antes do político em sentido estrito, há o social em sentido forte, bastaria para constituir sua grandeza.

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