São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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"Perdão recíproco"

FLORESTAN FERNANDES

O chamado ``perdão recíproco" nunca passou de nefasto ardil. O que o país perdeu com a aventura da ditadura militar jamais foi contabilizado fielmente. Aquilo que aparentemente ``ganhou", louvado em prosa e verso, não poderia ter sido multiplicado em condições normais de consolidação da democracia e crescimento econômico?
Aceitou-se a farsa para encobrir violências que deixaram marcas indeléveis e profundas. Ela perdura até hoje e tornou-se essencial para promover o reajustamento de serviçais da ditadura, civis e militares, às cúpulas do poder. Eles continuam à frente das elites das classes dominantes e dirigem a República com o mesmo cinismo implícito na idéia de uma reconciliação impossível.
A mudança de fachada não impede, contudo, a evidência de fraturas da sociedade civil que não se soldam a figurações retóricas. Aqui e ali explodem contradições entre o que os donos do poder desejam e as categorias e grupos aviltados não podem conceder. Se houvesse o ``perdão recíproco", o passado desapareceria no presente, como as águas de dois rios que se encontram e fundem seu caudal.
A questão dos mortos e desaparecidos políticos permanece uma chaga aberta. Familiares, amigos, companheiros e cidadãos responsáveis encarregam-se de reavivá-la. É o mínimo que podem fazer, em demonstrações de solidariedade que os subterfúgios dos que mandam não conseguem anular. Ainda agora, a Folha publicou várias matérias sobre o assunto que reforçam tais manifestações e suscitam a necessidade de não confundir esquecimento com opróbrio. O documentário ``Vala Comum", de João Godoy, contém o mesmo sentido.
A fala oficial não convence. Desmascarada, ou cede à justiça, mínima e tardia, ou se ridiculariza, levando de roldão a imagem das Forças Armadas. Nessa e noutras questões com idênticos fundamentos o racional seria atender às pressões dos que não partilharam o prato frio de uma vingança sadomasoquista, idealizada como ``reconciliação". Que cada um assuma os atos que praticou e que eles não sejam erguidos como empecilho à normalização da vida e da honra dos que querem, apenas, resgatar deveres herdados de um doloroso pacto de sangue.
A pulverização dos movimentos sociais e a falta de elementos que os unifiquem -como a situação de classe ou determinados fatores ideológicos e políticos convergentes- favorecem a omissão da maioria em assuntos como esse, de extrema gravidade e importância para a nação. Pois estamos coletivamente envolvidos com o prolongamento irresponsável de algo que precisa e pode ser solucionado com presteza.
Moral e razão indicam que a mudança da ótica do poder público se impõe. Ele não deve manter-se imobilizado, como se o passado fosse eterno e intransponível. Que os fatos sejam definitivamente apurados e todos os que sofreram agravos irreparáveis tenham sua dignidade restaurada. E recebam seu quinhão na memória coletiva e na história!

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