São Paulo, terça-feira, 4 de julho de 1995
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Deus em prestações

O fenômeno do crescimento do neopentecostalismo, no qual se destaca a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, é uma prova de que a história se repete como farsa.
No século 15, quando começavam a ganhar corpo na Europa as complexas mudanças que gerariam a Reforma, Gascoigne, reitor de Oxford, escreveu: ``Os pecadores dizem hoje: `Eu não ligo para quantos ou quais males eu pratiquei diante dos olhos de Deus; pois posso fácil e rapidamente obter a plena remissão de toda a culpa ou penalidade por meio de uma absolvição e indulgência que me é concedida pelo papa, cuja cessão por escrito eu posso comprar por quatro ou seis ducados, ou obter como prêmio numa partida de tênis"'.
De fato, as denúncias de uma crescente mercantilização da Igreja Católica impulsionaram a Reforma. Pregava-se a volta a uma religião mais pura, austera, individualizada. O protestantismo prosperou sob as mais diversas denominações, dividindo a cristandade ocidental.
É claro que os protestantes em geral não eram um bando de ascetas devotos da pobreza. Pelo contrário até, a ética protestante contribuiu para a ascensão do capitalismo. A prosperidade individual era vista como sinal da graça divina.
O neopentecostalismo, herdeiro da Reforma, parece porém ter extrapolado, como o mostra a tese do sociólogo Ricardo Mariano recentemente defendida na USP e apresentada por esta Folha ontem.
É positivo que as igrejas neopentecostais defendam que a vida terrena deve ser feliz. Séculos de opressão se devem ao conformismo pregado por muitas religiões.
Daí a defender que os fiéis façam tudo o que Deus pedir (por intermédio da igreja, é claro) em troca da ``garantia" de sucesso econômico é um contra-senso lógico e teológico. Parece absurda a afirmação do bispo Macedo de que, quando se paga o dízimo a Deus, ``Ele fica na obrigação de cumprir sua palavra, afastando os espíritos devoradores". Mesmo supondo que Deus estivesse sujeito às regras do contrato civil, cabe a pergunta: quem são os espíritos devoradores?
A resposta fica clara quando se constata que as igrejas neopentecostais incentivam seus fiéis a doar para as instituições: ``carro, casa, poupança, herança, jóias, caminhão etc.", como diz a tese de Mariano.
E Macedo vai mais longe: ``É necessário dar o que não se pode dar" -afinal, diz o bispo, quando se doa o que não vai fazer falta, o ato não tem valor para Deus.
O paradoxo é: para ser próspero é preciso dar à igreja bens superiores às suas posses, mas, neste caso, como é que se pode ficar próspero? Mais do que como farsa, neste caso a história parece repetir-se como uma grande ópera-bufa.

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