São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 1995
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Chega o "Mensageiro" de Tony Kushner

Cortes no texto e um tom grandiloquente prejudicam a boa montagem brasileira, dirigida por Iacov Hillel
Não foi o desastre anunciado. “Angels in America”, versão brasielira, é um espetáculo que mostra bem como as coisas se estabelecem rapidamente, neste fim de milênio.
As palavras dois personagens de Tony Kushner, verdadeiras revelações poucos anos atrás, cristalizam-se e frases inteiras já são encenadas com uma reverência paralisante, com direito a boca de cena, foco de luz e voz empostada.
O museu, tão cedo. Ainda é cedo para falar em Shakespeare; aliás, nem Shakespeare é para ser assim.
Frases como “a história a ponto de arrebentar, o milênio se aproxima “, tiradas do contexto, lançadas como verdades absolutas sobre a platéia, como profecias em algum púlpito, tornam-se vazias e ostentatórias.
Da mesma forma, “chegará o final, o céu desabará e haverá tmpestades horríveis e chuvas de luz venenosa”, lançadas do púlpito retoricamente, quase infantilmente, perdem toda a ironia, para não dizer o sentido.
O americano tony Kushner não é dramaturgo de fazer discurso em cena. Como o alemão Bertold Brecht, sua influência maior, ele é “ambivalente”, para ficar na expressão auto-irônica de uma das grandes cenas da peça e uma das cenas mais políticas do teatro contemporâneo, destroçada pelos cortes, na versão brasileira.

Não se entendem tantos cortes, a não ser pela submissão a uma suposta exigência de tempo do público, exigência já devidamente vencida nas montagens anteriores pelo mundo todo.
Os cortes foram profundos a ponto de virtualmente desaparecer com um dos personagens maiores da peça, Hannah, a mãe mórmon de Joe, advogado republicano gay.
Junto com ela somem duas cenas inteiras, uma com a frase, também de grande auto-ironia, em que uma mendiga louca avisa, “ah, sim, no novo século eu acho que nós seremos todos loucos”. Todos serão como ela, a louca pueril que cita Nostradamus e que a versão brasileira simplesmente matou.
Mas talvez a frase e a louca não fossem mesmo grandiloquentes o bastante, para os propósitos grandiloquentes da montagem.
A outra cena cortada, aquela em que Hannah e uma amiga sua, de Salt Lake City, falam com fé dos santos dos últimos dias e como que dão o outro lado, o lado bom dos reacionários mórmons, vem sendo questionada desde as primeiras montagens de "Angels in America".
Num debate em Londres, três anos atrás, o dramaturgo defendeu a cena irritado, dizendo que ela estava ali, não simplesmente para sustentar a trama, mas com a função maior de alterar o humor, de mudar o tom da peça, antes do último ato. Mas não adianta, que não entendem e cortam.
Cortes, grandiloquência, mas "Angels in America" sobrevive. E sobrevive em grande parte porque o americano Tony Kushner sabe contar uma história, como ele mesmo gosta de dizer.
No limite, a peça é ela própria sobre o ato de compaixão que é contar uma história, o ato de comunicar.
Depois de um meio século em que o entendimento foi negado, na idéia predominante do teatro, chegando aos casos terminais da última década, com as peças sem palavras, com a rejeição da comunicação como impossível, “Angels in America”surge como um arauto de novos tempos.
No final desta primeira parte de “Angels in America”, chamada “O Milênio se Aproxima”, a única montada no Brasil (e sem previsão de montagem da segunda parte, menos grandiloquente, chamada “Perestroika"), o anjo desce ao jovem com Aids e anuncia que o Mensageiro chegou.
O anjo é o Mensageiro. A metáfora, mais explícita impossível, é a do restabelecimento da comunicação com Deus. Acabou a espera por Godot, no trocadilho niilista de Samuel Beckett.
O século que se aproxima é aquele que vai trazer “tolerância, perdão, graça”, na profecia “lilás” de Belize, o enfermeiro “drag”. O século que se aproxima vai trazer Deus, no bom sentido.
Muita gente, a começar do papa João Paulo 2º, passando por Newt Gingrich, já presidenciável dos republicanos, acha a mesma coisa, que “ a Grande Obra vai começar”. Só não concorda com Belize quanto às prioridades.

Mas eu dizia que a versão brasileira é um bom espetáculo, com boas atuações, direção, cenografia, etc.
A direção geral é conservadora, como é o caso, quase sempre, nas adaptações de peças importadas. O figurino do personagem roy Cohn, os objetos de cena, os trejeitos de Belize, nada de novo.
Conserva-se o produto de Nova York, ou de Londres, o que não é de todo ruim, para falar a verdade.
Também como é o caso, quase sempre, nas montagens de sucessos importados, não faltam atuações irreverentes, em que os atores esforçam-se antes por adorar presunçosamente o próprio texto. Degustam o papel, antes de cuidar de levá-lo ao público.
Novamente, não é de todo ruim, apesar do prejuízo para o desenho de personagens como a Ethel Rosemberg de Eliana Guttmann e, acima de todos, o empobrecido Roy Cohn de Rodrigo Santiago.
As melhores surpresas ficam por conta de João Vitti como Prior Walter e de Cássio Scapin como Louis.
João Vitti ainda não integrou toda a tragicomicidade do personagem, o Profeta, o jovem com Aids no fim do milênio, mas não compromete, como a atuação anterior fazia prever. Evolui no palco, de forma emocionante.
Cássio Scapin nem chega a ser surpresa, na verdade. Um dos grandes jovens comediantes do país, parece já ter atingido o que João Vitti procura. Realça assim um personagem, aliás o alter ego de Tony Kushner, pouco valorizado em montagens anteriores.

Título: "Angels in America"
Direção: Iacov Hillel
Elenco: Leonardo Medeiros, Luís Miranda, Milah Ribeiro e outros
Quando: Quarta a sábado, às 20h30; domingo, às 19h30
Onde: Teatro João Caetano (r. Borges Lagoa, 650, tel. 573-3774
Quanto: R$ 8,00

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