São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 1995
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Até Milton sai do tom com Jazz Sinfônica

Cantor se apresenta em outra homenagem a Jobim

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL A CAMPOS DO JORDÃO

Campos do Jordão sedia o festival de inverno da ``arte povera". A quase inexistência de atrações foi uma maneira engenhosa de a Secretaria de Estado da Cultura estabelecer um contraste com o nível dos preços da cidade.
Ainda assim, o insensível turista trocou Campos do Jordão pela Europa. Está certo, a tarifas parisienses andam mais convidativos. Mas a ``cidade-luz" não promove, por exemplo, shows gratuitos como o da última sexta, com a Orquestra Jazz Sinfônica e o cantor mineiro Milton Nascimento. Nem daria noite de gala com a Banda Sinfônica do Estado, programada para a noite de anteontem.
Milton arquiva na alma um papel pega-multidões. Consegue capturá-las nos ambientes mais desertificados e gélidos. Como resultado, a população da cidade peregrinou quase inteira ao auditório Claudio Santoro, construído no topo de uma montanha para desencorajar o populacho oportunista.
Gente bonita, de carro e crachá, completou a lotação do auditório -1,2 mil lugares- sacudindo as cadeiras ao som dos notáveis baiões e xaxados da orquestra e de ``Maria Maria", cantada ao final por Milton.
O festival, num laivo de originalidade, prestou louvores ao compositor Tom Jobim (1927-1994) num show de repertório exclusivo do compositor carioca, embora Milton tenha extravasado seus hits no final.
Homenagear Tom virou elixir paregórico de eventos patrióticos. Público, artistas e Estado saem purgados e felizes em uma experiência de constipação cívica. Com a voz-turbo de Milton, o fato assumiu proporções épicas.
Milton canta como um acauã tristonho. Sua aparição toldou a orquestra. Entrou erradamente umas quatro vezes. Mas errar diante da Jazz Sinfônica vale pelo avesso. O grupo tropeça tanto no pentagrama que quem se engana acaba acertando. Milton foi assim.
``O Tom deve estar curtindo o que estamos fazendo", disse o maestro Nelson Ayres, da Jazz Sinfônica, depois de uma série de execuções de canções jobinianas.
Só se naquela noite Tom no céu estivesse de bom humor para ``curtir" com a execução de sua obra no sentido criminal do termo.
A Jazz Sinfônica é uma espécie de clube dos homicidas sinfônicos. Possui o condão de prender e torturar clássicos da MPB e comprometê-los para todo o sempre, sem deixar vestígios.
Cometeu outro crime perfeito com Tom. Iniciou com uma ``Jobiniana", do maestro Cyro Pereira. Seu arranjo aracnídeo pode ser chamado de ``Tom, o Filme", tanto que encheu as melodias de teias hollywoodianas e reminiscências do gênio da música Ray Connif. ``Triste", de Tom, ficou ainda mais.
A ``connificação" total se deu com a entrada do octeto vocal Tom da Terra e do líder do Conjunto Farroupilha, que quase se sentou no piano. Esse agregado de cantores de jingles canta bem, como num baile do saudoso Palladium. O resultado foi fantástico. Como se fosse possível, Tom morreu de novo.
Mas o melhor da noite ficou para o coro de assobios e o balé dos instrumentos, momentos memoráveis em que os músicos pararam de tocar em benefício do progresso das artes.
Ao compasso de ``Maria Maria", os quatro trompistas se vingaram de Mahler. Agitaram os instrumentos para o ar como se fossem passistas de frevo.
Só foram superados pela performance da ``spalla". Exibindo capacidade aeróbica invulgar para a idade, excitou a galera com meneios de macaca-de-auditório. Em que conservatório ela aprendeu violino?
O Estado precisa repensar com urgência sua política cultural e, quem sabe, substituir a Jazz Sinfônica por um playback da Orquestra Tabajara. Para não dispensar os músicos, poderia até montar uma companhia de teatro rebolado.

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