São Paulo, quarta-feira, 19 de julho de 1995
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Brasil vive a ``farra das importações"

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Já se tornou clichê a expressão "farra dos importados". Importa-se tudo no Brasil -da manteiga dinamarquesa aos carros coreanos- e a opinião dos especialistas é que essa política de liberalidade aduaneira ajudou no combate à inflação.
Mas quem fala em "farra" sabe que a coisa não pode durar muito; o país vai perdendo mais e mais divisas no comércio exterior.
Só agora, entretanto, a farra dos importados encontrou um símbolo concreto, um objeto capaz de resumi-la plenamente: são os bombons Ferrero-Rocher. Nenhum outro produto estrangeiro invadiu com tanta ênfase o mercado interno. Os carros japoneses, alemães e coreanos circulam por toda parte: mas as marcas são tantas que o símbolo não se fixa.
Computadores, roupas, aparelhos de som vêm de todas as partes do mundo, mas não ostentam fisionomia própria. Os automóveis Lada e as batatas fritas Pringles ficaram como exemplo da primeira fase, da fase infantil da importação. Quinquilharias de toda espécie são vendidas: há um papagaio eletrônico que grava o que você diz e repete se apertado na barriga; há os cigarros indonésios, com cheiro de cravo; reloginhos; mas nada se compara aos bombons Ferrero-Rocher.
Trata-se de acontecimento recente. Há uns quatro meses, eram raridade: podiam, sem constrangimento, servir como presente fino a senhoras e cavalheiros.
Hoje em dia, estão à venda em qualquer banca de camelô. Uma amiga voltou recentemente da cidade de Varginha, onde verificou a presença avassaladora do produto. Ninguém se espantará se os bombons Ferrero-Rocher vierem a ser incluídos na merenda escolar; ou se contarem no cálculo do salário mínimo.
É um caso eloquente de açambarcamento do mercado. O país está entupido desses bombons.
Mas não é só pela onipresença dessa mercadoria que se explica o valor simbólico que ela adquiriu. Faltava um símbolo para a política de importações; o Ferrero-Rocher ocupou o posto, por várias razões.
Em primeiro lugar, esse bombom corresponde exatamente à idéia do produto importado, a saber, o supérfluo-que-é-melhor. Já tínhamos o Sonho de Valsa; delicioso, mas algo simplório na massa morena e brasileira do recheio.
A psicologia do Sonho de Valsa era a rigor incompleta. Vejamos. Eis uma pelota de chocolate. Sob o revestimento de chocolate comum, os dentes encontram uma casquinha torrada de massa e então mergulham num interior carnoso, nos limites do grudento, feito de miscigenações nacionalistas, sabores mestiços, mazombices, nhenhenhéns. Seu suposto equivalente simétrico, o Ouro Branco, é uma hipocrisia racial -o chocolate branco com alma de preto.
Mas o Sonho de Valsa, em sua correção política, tem uma imensa virtude e um imenso defeito. A virtude é que transformou o brega em coisa apreciável. Sua embalagem, cor-de-maravilha com amarelo e preto, notas musicais, acordeões e casais de dançarinos, e seu nome -Sonho de Valsa-, rebuço melodioso, seresteiro e vienense, sua popularidade, seu preço... tudo é brega, brasileiramente brega.
Contudo, não há quem não goste de um Sonho de Valsa. Ocorre, nesse bombom, uma daquelas raras afirmações de nossa nacionalidade, a que a Revista da Folha fez referência domingo passado.
A sandália Havaiana e o Fusca, diz a revista, são outras mercadorias "brazucas". Brasileiras, mas recentemente promovidas ao universo chique.
Já o Ferrero-Rocher se apresenta como o Sonho de Valsa do primeiro mundo. Percebeu a simplicidade do nosso bombom. Investe, por exemplo, num maior refinamento de consistências.
Enquanto no Sonho de Valsa a camada de chocolate por cima era lisa, a do Ferrero-Rocher é irregular, salpicada de fragmentos de avelã. A casquinha de dentro é aproximadamente a mesma, mas o recheio se revela, não mais massudo e alimentício, e sim cremoso, pasta refinada em que está submerso o caroço de uma avelã real.
Os dentes passam, assim, por quatro ordens distintas de consistência; comparado ao Sonho de Valsa, é a música clássica em contraste com a seresta ou a marcha de rancho. Não por acaso, o anúncio do Ferrero-Rocher na televisão mostra uma orquestra de câmera, mordomos, salões franceses.
Tudo se torna sutil com o Ferrero-Rocher. Nada mais adequado a uma situação política em que os defensores do PSDB e Fernando Henrique argumentam o tempo todo no sentido de que "o mundo ficou mais complexo".
Não há mais lugar para os velhos maniqueísmos Capital versus Trabalho. Tudo ficou mais complexo, o bombom da moda tem quatro camadas contra as duas do Sonho de Valsa. O sonho, aliás, acabou.
Há outro aspecto que torna o Ferrero-Rocher mais consonante com os novos tempos. É que se trata de um bombom europeizante. O acesso ao Primeiro Mundo não é mais via Miami. Passa por Paris; FHC sabe disso.
O bombom é de fabricação italiana; mas vá lá. Há algo na embalagem que lembra o dourado dos palácios de Veneza; a irregularidade do formato, as protuberâncias da casca do bombom são ornamentos rococó; um interior de ópera, um capricho ao gosto de Ludwig 2º da Baviera se exteriorizam nessa neoguloseima.
Júpiter, para seduzir a ninfa Danaé, fez com que chovessem sobre ela moedas de ouro; uma pintura de Veronese trata do tema. Espantou-me sempre que, em plena Renascença italiana, o pintor houvesse abdicado de qualquer realismo ao retratar as moedas caindo do céu: pintou o dourado das moedas deixando nelas a marca do pincel, lambida amarela na superfície do quadro.
Chovem bombons Ferrero-Rocher, num luxo rococó, sobre os balcões dos camelôs na avenida Paulista. Ferrero-Rocher, aliás, é mais nome de banco do que de bombom.
Certa vez, chegando a Roma, o chofer de táxi me apontou uma propaganda, um outdoor dos bombons Baci. Os Baci têm uma breguice azulada e romântica e são melhores que os Ferrero-Rocher. Mas o chofer de táxi me avisou: "Experimente também o Ferrero-Rocher. Sono anche molto popolari." Também são muito populares.
Não estamos no Primeiro Mundo. As importações nos consolam desse fato. O que antes era privilégio de free-shop se consome na padaria da esquina. O mesmo ocorre em Lima, Cidade do México, Caracas, Cingapura, Vladivostok ou Hanói.
Já é um progresso. Imagino, contudo, que nesse progresso há uma certa decadência. Os bombons Ferrero-Rocher só surgiram quando a chamada "âncora cambial" vacila. O dourado de sua embalagem, seus paraísos de volúpia veneziana, sua fosforescência varejeira não prenunciam nada de bom.

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