São Paulo, quarta-feira, 19 de julho de 1995
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A lei é o limite das maiorias

HÉLIO BICUDO

O Congresso Nacional vem recebendo os aplausos dos meios de comunicação pela sua brilhante ``performance" no primeiro semestre deste ano. Os deputados e senadores votaram projetos de leis e emendas constitucionais, não ocorrendo em nenhuma das sessões deliberativas realizadas nas duas Casas -Câmara dos Deputados e Senado Federal- falta de quorum impediente da normalidade dos trabalhos.
Formidável! Mas será que, mais uma vez, não estaremos tomando a nuvem por Juno?
Quem se detiver no exame do processo legislativo que preside a tramitação de emendas constitucionais irá verificar que deixou ele, na verdade, muito a desejar, descolorindo, portanto, o quadro que vem sendo pintado pela imprensa em geral. Nada se discutiu com profundidade, limitando-se os parlamentares apenas a votar as matérias em pauta segundo as determinações das lideranças partidárias ligadas ao Poder Executivo.
O problema constitucional, ou seja, o exame do pré-requisito da constitucionalidade das medidas propostas não teve o necessário aprofundamento. Não vimos, em nenhuma das instâncias, refutados argumentos que demonstravam a inadmissibilidade constitucional das emendas em questão, as quais, por assim dizer, quebravam a espinha dorsal da Carta de 1988, impondo um novo modelo de Estado, ao arrepio de princípios fundamentais, adotados pela Constituição Federal, dentre outros o da soberania nacional, e violando, por via de consequência, direitos e garantias individuais, o que seria impensável num Estado de Direito Constitucional.
Na Comissão de Constituição e Justiça, fórum das discussões constitucionais, as emendas foram apenas votadas, não ouvindo a maioria, mesmo porque trazia seu voto no bolso, a palavra da minoria, como nem sequer existisse.
Chegou-se ao cúmulo -o que o Regimento Interno da Câmara veda de maneira muito clara- de se emendar emendas, para torná-las admissíveis do ponto de vista constitucional e permitir o seu encaminhamento às comissões temáticas. Emendas a emendas só podem ser apresentadas com o apoiamento de um terço de deputados e isso somente nas comissões temáticas.
Na Comissão de Constituição e Justiça só se discute a admissibilidade constitucional do texto apresentado, que não pode ser emendado ou desmembrado (o que equivale a novas emendas). A inconstitucionalidade parcial contamina o texto por inteiro, devendo-se concluir pela sua rejeição liminar.
Optou-se, entretanto, por atropelar o Regimento Interno, que é a lei da Câmara, porque, rejeitada a emenda, somente poderia ser reapresentada na próxima sessão legislativa, quer dizer, daqui a um ano.
Nas comissões especiais (temáticas) não se cogitou, ainda, da problemática constitucional. Nenhum constitucionalista foi ouvido. E aí está o parecer do Instituto dos Advogados Brasileiros a fulminar, constitucionalmente, essas mesmas emendas, exatamente porque emendas não podem desfigurar aquilo que é o fundamento do Estado, na opção dos constituintes de 86/88.
Em poucas sessões, ouvindo-se pessoas escolhidas a dedo e deixando de lado qualquer possibilidade de participação popular (fizeram-se ouvidos moucos ao apelo a um referendo popular), as emendas foram aprovadas nas comissões temáticas e remetidas a plenário, onde, por igual, nada se discutiu, ocorrendo as votações mediante ``composições" e ``barganhas" inadmissíveis numa assembléia que tivesse um mínimo de respeito próprio.
Como se viu, a maioria, ignorando as regras legais, venceu a batalha da revisão. Ora, o limite da atuação das maiorias é a lei, e, no caso, a lei foi atropelada ou desconhecida, acuando-se as minorias. E, com isso, desaba a democracia.
Essa a história, em breves palavras, do ``magnífico" trabalho do Congresso Nacional no primeiro semestre deste ano. É uma história que precisa ser contada e, na oportunidade devida, repassada ao Supremo Tribunal Federal, sobretudo em ações diretas de inconstitucionalidade, para que se contenha a maioria nos limites da lei, respeitada, como deve ser num Estado de Direito Democrático e Constitucional, a sua lei maior. Mesmo porque, ao contrário, estaremos novamente a mergulhar no arbítrio.

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