São Paulo, quarta-feira, 19 de julho de 1995
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Sindicatos, governo e "modernidade"

FÁBIO WANDERLEY REIS

Fácil ou difícil que seja governar o Brasil, não há como negar que, apesar da falta de políticas claras em certas áreas, o país anda bem como há tempos não se via, e a passagem dos primeiros seis meses de FHC se dá com bons motivos de comemoração.
Mas a ação do governo suscita reservas numa área importante, tanto mais que tem relevância para a questão da marca ``social" (ou social-democrata) da administração de Fernando Henrique. Refiro-me à orientação quanto à estrutura sindical existente no país e ao que caberia fazer a respeito, a qual surge com clareza no noticiário relativo à medida provisória da desindexação, especialmente em certas manifestações do ministro Paulo Paiva.
Em declarações reproduzidas textualmente pela Folha no dia seguinte ao do anúncio da MP, por exemplo, dizia ele que ``é preciso acabar com os sindicatos por base e estabelecer sindicatos por empresa".
Ora, é patente a arrogância envolvida na pretensão governamental de dizer como o movimento sindical se há de organizar. Se é possível pretender sustentar que a edificação da estrutura sindical corporativa realizada por Getúlio Vargas correspondia a desígnios de manipulação autoritária, ela tem a seu favor pelo menos o fato de que redundava em dotar os trabalhadores do importante instrumento organizacional, que poderia eventualmente ser utilizado (como veio, de fato, a ocorrer) na busca trabalhista de condições de maior autonomia.
Agora, ao contrário, a postura autoritária do governo redunda na ironia de tratar de persuadir os trabalhadores a que abdiquem da organização já alcançada e recomecem divididos e fragmentados a tarefa de lutar por seus interesses. Talvez isso fosse bom para o objetivo governamental de desindexação da economia. Do ponto de vista do próprio movimento sindical, porém, a recomendação é um evidente contra-senso.
A que se deverá que um ministro chegue a enunciar esse contra-senso como política de governo? Claramente, a razão está no império da ideologia do ``moderno" a que assistimos.
Ela se distingue pela suposição de que, se algo pode ser apresentado como correspondendo a tendências ``novas" no plano mundial, então tais tendências devem ser vistas também como algo bom e desejável sem que se careça de qualquer argumento mais elaborado.
Se as tendências que se observam em países europeus nas relações trabalhistas, em correspondência com a nova dinâmica econômica da globalização, apontam para a dessindicalização e a fragmentação, então a fragmentação e a quebra das estruturas sindicais centralizadas se transformam em valores a serem almejados.
Omite-se, assim, a consideração de que os mecanismos ``neocorporativos" em que figuram tais estruturas centralizadas são, em articulação com o Estado de bem-estar, parte crucial dos arranjos em que se configurou o compromisso democrático estável que caracterizou aqueles países nos últimos decênios.
Como advertem alguns dos mais lúcidos analistas da atualidade política mundial, como Robert Dahl e Adam Przeworski, a ruptura desses arranjos pode significar o comprometimento da própria estabilidade democrática.
Por contraste, é revelador registrar que, em simpósio realizado no Cebrap há alguns meses, conhecido estudioso paulista, depois de apontar as novas tendências à fragmentação das relações trabalhistas na Europa e de recomendá-las com ênfase como parte da necessária ``modernização" brasileira, admitia nada ter a dizer a respeito de suas consequências para a questão da governabilidade, não obstante tratar-se do tema central do simpósio.
Naturalmente, a contribuição das estruturas corporativas para a governabilidade democrática reside antes de tudo na criação de certa organicidade em que se torna possível o diálogo consequente entre atores capazes de assumir compromissos em nome das coletividades ou categorias que representam -e observe-se que, em comparação com os países de maior tradição democrática, o Brasil se distingue antes pela carência dessa organicidade.
Cabe acrescentar, ainda, a ponderação de que as tendências fragmentadoras apontadas se associam, mesmo nos países economicamente mais avançados, com tendências tais como a ``nova pobreza", o desemprego e a intensificação da violência urbana. E que, no que se refere ao nosso país, esses acompanhantes perversos da nova dinâmica globalizante virão cumular a operação dos fatores endógenos que há muito conformam o drama da dualidade social brasileira.
Em síntese, o novo pode ser ruim e pode exigir ação em sentido contrário -coisa que o governo, em certos aspectos importantes de sua atuação, dá estranhamente a impressão de não saber ou suspeitar. Reconheçam-se com realismo as constrições gerais impostas pelas tendências novas da atualidade no plano da administração econômica, com a necessidade de aposta renovada no mercado e de enxugamento e agilização do Estado.
Mas não restarão muitas esperanças se, de um governo Fernando Henrique, não se puder cobrar mais criatividade e menos acomodação ``realista" a supostos imperativos econômicos num plano como o das relações trabalhistas, bem como algo diferente da retórica e das vacilações de qualquer governo Sarney ou Collor na esfera social geral.

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