São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 1995
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Uau, uau, uau, todo homem é animal

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Cherry é o bicho. Edmundo é o animal. Os gritos dos estádios reelaborados pela propaganda ganham as ruas. E num momento em que o tráfico de animais só perde para o das drogas. Será nostalgia de espécies em extinção? Ou saudade do bicho que existia em cada um de nós?
Pensar que houve um tempo "pão pão, queijo queijo". Seres humanos de um lado, animais de outro. Claro como o pensamento cristão.
As fronteiras começaram a se diluir no século 12. Fábulas e bestiários tornaram comum a idéia de bichos se comportarem como gente.
Bastou um pequeno passo intelectual para aceitar gente virando bicho. Caía o muro qualitativo.
Isso foi há tanto tempo. Como explicar que, no fim do século 20, frenéticas torcidas de futebol recoloquem a questão das fronteiras? De que animal estão falando quando gritam "uau, uau, uau"? Seria o mesmo de São Francisco de Assis?
Não se trata de humanizar os bichos, mas de animalizar os homens. Ao lado do santo, os bichos ficam mansos, tornam-se vegetarianos.
São Jerônimo tinha um leão, abutres se recusaram a devorar o corpo de São Vicente. O animal da torcida deixaria a marca de suas patas no santificado traseiro, rasgaria mantos sagrados com dentes implacáveis.
Nossos santos desconhecem o jogo pesado de domingo à tarde, depois da macarronada. Querem romper com a ambiguidade, acalmar feras, transformá-las, por milagre, em seres solidários e domésticos. Torcidas pedem fratura exposta.
Numa agência de São Paulo, o redator se interroga: "É o bicho, é o animal?". No Século 14, um teólogo se interrogava: "Duas cabeças num só corpo são batizadas com dois nomes ou um só?". Ciclopes, amazonas, sátiros, tantas misturas foram surgindo, homem com bicho, bicho com bicho, Leucrotas, parandrus, crotote.
Nos tempos do muro, nada disso florescia. A ambiguidade era monopólio do morcego, que se fingia de pássaro quando queria ratos e de rato quando queria pássaros.
A cada ser fantástico correspondia uma fantástica cópula. Os homens eram vistos com desconfiança. Quem fez isto com a pobre da vaca?
Na Idade Média, quando caiu o muro, todas as misturas mentais passaram a ser explicadas como se fossem o resultado de uma concreta conjunção carnal -homem com lobo, cão com macaco.
Perdemos a confiança ilimitada na fertilidade animal. Drummond celebrizou o coletor Hildebrando que comia galinhas, mas não as comia propriamente à mesa. Erotismo no zôo já não gera monstros mas poemas, com o flerte de uma escritora com um búfalo.
Edmundo podia ser um centauro, um corpo que se transforma como queria Ovídio em sua Metamorfose.
Não se trata mais de mostrar a besta interior através de corpos mutantes. Nem de lançar mão da moderna dicotomia racional-irracional para definir bicho e gente.
Todos sabemos que somos paixão e razão. E está aí a biografia de Darwin sendo lançada no Brasil quase simultaneamente com a campanha da Coca. Cherry é o bicho, Edmundo é o animal e o velho Charles tenta de uma certa maneira preencher as lacunas que o pensamento cristão nos deixou.
Numa história em que a expressão "bestializados" teve um significado tão grande para definir mudanças que vieram de cima, reinventamos, orgulhosamente, nesse fim de século, um novo elo homem-animal.
Tragados ambos pela esfera da mercadoria, vendendo-se ambos no mercado, ora como força de trabalho, ora como objeto sentimental, homens e bichos negociam agora os termos de sua relação. Vendem-se o homem e o bicho que há no homem.
Nas velhas arenas, a massa delirava quando o leão comia o homem. Hoje, quer apenas que o homem cuspa o leão que o comeu nos tempos de Cristo. Cansaço, desconforto da condição humana, tédio dominical, uau, uau, uau.
O ministro de 50 anos que nunca viu uma vaca disse que o homem era o único animal que podia imaginar os outros.
Mas é o único também que perseguiu religiosamente a tarefa de humanizar os bichos e chega ao fim do século com uma lata na mão, suor no rosto, celebrando o animal dentro de si.
Edmundo e São Francisco de Assis poderiam tabelar em algum momento, mas que técnico ousaria escalá-los para o mesmo time?

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