São Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 1995
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O evangelho do dia

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - O novo vigário tinha a fama de ser o maior orador da diocese. No primeiro domingo depois de sua investidura, a igreja estava, como se dizia antigamente, à cunha. Todos queriam testar a oratória do novo pastor.
Na hora do sermão, ele se virou para o rebanho e perguntou: ``Irmãos, sabeis o evangelho do dia?". As ovelhas balançaram a cabeça, não, não sabiam, queriam beber os seus ensinamentos. O padre não se apertou: ``Vejo que vocês não conhecem o evangelho de hoje. Logo, não devemos perder tempo falando daquilo que não sabem. Vamos rezar que é mais útil".
No domingo seguinte, o padre fez a mesma pergunta. O rebanho, entusiasmado, balançou a cabeça, afirmativamente, todos sabiam. O padre mais uma vez escapou: ``Irmãos, vejo com alegria que vocês conhecem o evangelho do dia. Não vamos perder tempo com aquilo que todos já sabem. Orar é mais necessário". E continuou a missa.
O rebanho se reuniu e combinou que, no próximo domingo, metade diria que conhecia, outra metade que não, e assim teriam o sermão. Não deu outra. O padre perguntou: ``Irmãos, sabeis o evangelho de hoje?". As ovelhas do lado direito da igreja balançaram a cabeça negativamente, a outra metade balançou afirmativamente. Estava posto o desafio.
Mas o padre devia ser do PSDB. Saiu-se com esta: ``Meus irmãos, vejo que metade do meu rebanho conhece o evangelho de hoje, a outra metade não. Assim, as ovelhas que sabem devem contar para as que não sabem os ensinamentos do dia. Vamos orar, que orar é preciso". Virou-se para o altar e continuou a missa.
Essa história é verdadeira, rola pelos seminários, o deputado Roberto Campos deve conhecê-la. Lembrei-me dela a propósito de uma porção de coisas que estão acontecendo nesta imensa paróquia que é o Brasil. A única diferença é que não há metades. São poucos os que sabem, são legião os que não sabem. E o governo dá as costas à plebe rude, acreditando que o mercado/rebanho será solidário e tudo ficará bem.

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