São Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 1995
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Publicidade como comédia

OTAVIO FRIAS FILHO

No começo, a propaganda estava colada ao produto, ela se limitava a proclamar o que era colocado à venda. Era a época daqueles anúncios de antigamente que descreviam, com entusiasmo ingênuo, as qualidades da coisa a ser empurrada goela abaixo do ``prezado cliente e toda a sua família".
Mas como o mundo da propaganda, onde repetir é a verdadeira alma do negócio, funciona por saturação, o público não demorou a se sentir saturado do estilo de origem. Foi preciso embrulhar o produto, então, numa aura cada vez mais ampla, disfarçando a intenção crua de vender.
Em termos linguísticos, foi preciso fazer dos anúncios perífrases, voltas ao redor do assunto. A publicidade passou a ser narrativa, ficcional, em vez de descritiva. Ela mostrava agora o dinamismo de situações do dia-a-dia em que o produto coubesse como uma luva, perfeitamente integrado à paisagem da família.
Acontece que essa fórmula também cansou; tornando-se convencional, ela permitiu que voltasse à tona o temível propósito de vender (e sua contrapartida, de consumir), ou seja, aquele núcleo que toda publicidade tem de deslocar, reprimir, esconder. Era preciso mudar outra vez.
O passo seguinte foi temerário. De narrativa a propaganda passou a ser humorística, o épico virou comédia. Ao dar essa cambalhota, a publicidade assimilou a hostilidade represada havia décadas, uma ironia que só crescera conforme o público se tornava mais impaciente, devolvendo-a sob a forma de auto-ironia.
Isto coincidiu, parece, com uma corrida em massa dos publicitários para os consultórios de psicanálise, de modo que chamar essa fase, na qual ainda estamos, de cômica ou psicanalítica dá na mesma. A publicidade revê a si própria, ironiza as suas intenções, volta-se contra o produto.
Mais de um anunciante já sentiu perplexidade e desconforto, examinando a campanha que lhe ofereciam, ao ver seu produto negado, ridicularizado, submetido a todo tipo de achincalhe, quando não acontece de simplesmente sumirem com ele para dar lugar à ``mensagem". Felizmente, são casos excepcionais.
O que mais ocorre, aliás com frequência soporífera, é enfiar o produto num trocadilho, nem sempre verbal. Duas narrativas paralelas, duas ordens de valores, antes separadas, entram em comunicação a fim de criar um lapso de graça: a distração necessária para que o anúncio supere as defesas do público.
Tudo isso funciona melhor na teoria que na prática. Com as exceções de praxe, a maioria dos anúncios não passa de trocadilhos revoltantes. Mas o público não se perturba, talvez porque sua credulidade, embora cada vez menos simplória, seja inesgotável, ou porque não há mais como escapar da propaganda.
Montada sobre a mercadoria, ela domina o mundo. Anúncios no gênero Benetton são o passo mais recente de um longo percurso em que a publicidade busca fugir do produto, emancipar-se, ser a sua própria mercadoria. Anúncio e produto trocaram afinal de lugar, o que é cômico, ou trágico, tanto faz.

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