São Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 1995
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Saúde sem fronteiras

JÚLIO CAMPOS

Recentemente, em pronunciamento feito na tribuna do Senado, defendemos a necessidade de promover, na revisão constitucional que se encontra em pleno andamento, a abertura do setor de saúde do país ao capital estrangeiro.
Como é de conhecimento geral, as alterações propostas no âmbito da ordem econômica visam ao importantíssimo objetivo de dar maior abertura à economia nacional, livrá-la de freios e regulamentações estéreis, ultrapassados e inconvenientes.
Com essa abertura e desregulamentação, objetiva-se dotar os agentes econômicos de melhores condições para competir no mercado internacional e, principalmente, para oferecer ao consumidor brasileiro uma gama mais diversificada de produtos e serviços de boa qualidade.
Uma das emendas já aprovadas pela egrégia Câmara dos Deputados é aquela que elimina o conceito de ``empresa brasileira de capital nacional", definida, no vigente texto constitucional, como aquela cujos controladores são domiciliados e residentes no país.
Uma vez promulgada essa emenda, as prerrogativas de tratamento favorecido por parte do governo, bem como de pesquisa e lavra de recursos minerais e aproveitamento dos potenciais de energia elétrica -hoje reservadas às empresas brasileiras de capital nacional- passarão a ser destinadas às empresas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país, desimportando o local de residência de seus controladores.
A alteração proposta, ao eliminar a descabida discriminação ao capital estrangeiro, busca, evidentemente, atraí-lo ao país em maiores volumes, sob o fundamento irretorquível de que ele é necessário e até indispensável à dinamização e ao crescimento da economia nacional.
Ora, no momento em que se elimina do texto constitucional o conceito de empresa brasileira de capital nacional, visando a estimular um maior fluxo de capitais estrangeiros para setores produtivos, não faz qualquer sentido excluir esse mesmo capital do setor de saúde.
Afinal, seria de todo incoerente modificar o conceito de empresa nacional e não eliminar as restrições ao capital estrangeiro. Dessa forma, reclama urgente modificação o parágrafo terceiro do artigo 199 da Constituição Federal, que veda ``a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no país".
De fato, inexiste qualquer argumento racional a suportar a inclusão desse dispositivo no texto constitucional, só se podendo compreendê-la enquanto uma vitória do mais estreito nacionalismo. Afinal, em que medida a abertura de um hospital por uma empresa estrangeira pode representar ameaça à soberania nacional?
A rigor, a exclusão do capital estrangeiro do setor de saúde só traz prejuízos ao conjunto da população brasileira, que vê reduzidas suas opções de acesso a hospitais privados no exato momento em que o sistema público de saúde atravessa grave crise.
É incompreensível que a proibição à participação de empresas estrangeiras no setor seja mantida numa conjuntura em que as verbas públicas para a saúde declinam ano a ano, os hospitais estão completamente sucateados, transformados em depósitos de doentes e a situação do atendimento é caótica, beirando o colapso.
Essa situação de carência generalizada, que pode ser testemunhada por qualquer brasileiro que já teve um parente necessitando de internação, demonstra que o país é um campo aberto em termos de boas oportunidades para investimento na área de saúde.
O empresariado estrangeiro tem plenas condições de fazer seus cálculos de custo/benefício e avaliar em quais regiões do país vale mais a pena investir, bem como quais o gênero e o porte de estabelecimento mais interessante economicamente.
Do ponto de vista do interesse nacional, o que se faz evidente é que a falta de leitos e a precariedade do atendimento tornam bem-vindos quaisquer investimentos no setor. Se existe a possibilidade de empresas estrangeiras construírem e administrarem hospitais de médio e grande porte, não há por que se opor à mudança da Carta Magna, diante da realidade de um povo pobre que, muitas vezes, não obtém atendimento algum, morrendo nas filas de espera!
Entendemos que a vedação constitucional ora vigente tem um único grupo de beneficiados: os detentores dessa verdadeira reserva de mercado, que temem a concorrência por não se sentirem à altura para o confronto de técnicas gerenciais e de atendimento. Nos dias que correm, porém, as políticas públicas da nação não são mais determinadas em função dos interesses particulares de pequenos grupos.
O que ressalta da análise do mencionado parágrafo terceiro do artigo 199 da Constituição Federal é sua total ausência de fundamento lógico. É evidente, a partir de qualquer critério de bom senso, que a entrada de empresas de capital não-brasileiro no setor de saúde não acabará com o Sistema Único de Saúde, pois esse é um serviço público imprescindível, que o governo federal sequer cogita extinguir, por saber de sua importância para a população de baixa renda.
Igualmente, não resiste à menor análise o argumento de que os hospitais públicos ou conveniados com o SUS deixariam de existir pela concorrência externa. Afinal, sua clientela é a população pobre, que a eles continuaria acorrendo. Da mesma maneira, não se pode afirmar com segurança que, eliminada a reserva e aberto o mercado, milhões de dólares serão investidos na construção de hospitais sofisticados voltados para o atendimento da minoria abastada dos brasileiros -aliás, se isso ocorresse, também não representaria qualquer prejuízo para a nação.
Na verdade, nada permite dizer que o dinheiro estrangeiro a ser aplicado em hospitais destinar-se-á a estabelecimentos de grande porte e de tecnologia de ponta. É bem possível que estudos de viabilidade econômica recomendem a criação de hospitais de médio porte, com tecnologia adequada, em regiões hoje desprovidas de casas de saúde.
Eventuais pressões visando à manutenção do status quo no sistema hospitalar militam, na prática, contra pobres, remediados e ricos. Suprimir o parágrafo terceiro do artigo 199 da Carta Magna é medida oportuna e necessária, conveniente para a melhoria do sistema de saúde nacional e coerente com as emendas constitucionais já em tramitação.

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