São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 1995
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Inflação muito católica

JOÃO SAYAD

Sou católico apostólico romano. Fui batizado, fiz primeira comunhão, quis ser padre, fui crismado e casei na Igreja. Deus me perdoe se o que vou dizer é uma blasfêmia.
Mas a verdade é que os países católicos sempre tiveram inflações maiores do que os protestantes. Têm sido as maiores taxas internacionais, desde os anos 30. Toda a América Latina, a França, a Itália. Exceções: Portugal e Espanha, que, entretanto, passaram a maior parte do período sob os governos fascistas de Franco e Salazar. Outra exceção pouco conhecida e curiosa: a Inglaterra protestante também já teve seu período de inflação latina. Porém, mais curto, passado e terminado. A inflação é realmente um mistério. Será que ser católico gera inflação?
A base do argumento é clássica: Weber analisa em ``A ética protestante e o espírito do capitalismo" como o espírito de austeridade e trabalho da Reforma coincidiu ou resultou na revolução capitalista -um mundo racional, eficiente, disciplinado, obcecado com lucros e próspero.
No mundo capitalista a moeda é o objeto mais importante e o mais incompreendido. É a instituição básica da sociedade de indivíduos, impessoal, do período moderno: o trabalho vale R$ 100 por mês, não importa o nome do operário, o aluguel da casa é R$ 1.000, não importa o nome do inquilino. A propriedade individual, a independência, a possibilidade de ir e vir, de ser rico aqui e viver em qualquer lugar depende da moeda.
O trabalhador de um lado, o capitalista, de outro. Nada de pessoal, mas o trabalho vale R$ 100 por mês e pronto. A sociedade de indivíduos, capitalista, não existiria sem moeda. O mundo protestante é um mundo de indivíduos, onde a moeda pode cumprir o seu papel de despersonalizar as compras, as vendas, o trabalho e as pessoas.
No mundo católico é diferente. Como diz Roberto Da Matta (``Carnaval, Heróis e Malandros"), somos um mundo de pessoas. Cada um de nós é um indivíduo, mas especial: com ``curriculum vitae", pai e mãe conhecidos, relacionamentos, status. ``Você sabe com quem está falando?"
No McDonald's protestante, você sabe o horário de abertura, fechamento e os três tipos de sanduíches que pode comer. É a comida abstrata (o alimento do trabalho abstrato de Marx). É um padrão de eficiência e de impessoalidade. Numa cantina italiana, católica, o dono escolhe a comida para você, reclama se você não comer tudo, abre e fecha o restaurante quando tem vontade. Cada prato é um prato preparado com o carinho de uma mãe italiana. É um artesão da culinária. É uma boa pessoa.
O que isto tudo tem a ver com a religião católica? Para os católicos, a salvação é pessoal e sempre pode ser concedida pela confissão -uma conversa pessoal, sobre o seu caso pessoal. Tudo será julgado e sempre poderemos ser perdoados. Basta nos arrependermos. É um mundo de jeitinhos -cada caso é um caso, cada indivíduo, uma pessoa. Matou, roubou, prevaricou, cometeu adultério, tudo bem. Se se arrepender, será perdoado aqui na terra e salvo. O protestante não -você é um monge de terno e gravata e a salvação não depende de você ou do seu arrependimento. Angustiante, difícil -acordar cedo, trabalhar muito, gastar pouco, ficar rico. Mas isto não garante a salvação. Se você tiver sucesso, pode ser um sinal que você tenha sido escolhido lá atrás, na eternidade, para aumentar a glória de Deus neste mundo terreno. Não está garantido, é apenas um sinal.
Neste nosso mundo católico, o capitalismo vai mal. Aqui, cada um é cada um. O indivíduo, genérico, anônimo, tem um sentido pejorativo, faz parte da linguagem policial -``o indivíduo foi detido para averiguações". Já as pessoas têm o seu nome na lista da alfândega para não ter a bagagem revistada como qualquer indivíduo.
Neste mundo é muito difícil fixar preços, trabalhar com dinheiro. Um dólar é um dólar nos Estados Unidos. Aqui, um cruzeiro, depende de quem paga e de quem recebe. O salário parece mais com uma mesada, o salário pago pelo pai aos filhos. Não é necessariamente maior do que o salário capitalista -é um favor, visto por quem paga. É baixo, visto pelo ingrato que recebe. São apenas R$ 100, mas cheios de emoções, boas e más. Carinho, sentimento de proteção, por parte de quem paga. Inveja, sentimento de injustiça da parte de quem recebe. Portanto, não é de se estranhar que o valor da moeda seja duvidoso. E que tenhamos inflação.
O Brasil está mudando. Este país cordial (cordial vem de coração) vai se tornando lenta e tardiamente capitalista. Há dez anos que a inflação está para acabar. Parece que agora está realmente acabando -se Deus quiser. Sintoma de que o Brasil está se tornando uma sociedade de indivíduos e não de pessoas, como sempre foi.
Bom, segundo Da Matta -estamos progredindo, ficando mais iguais uns aos outros, deixando para trás 500 anos de sociedade autoritária, ibérica e lusitana... Ruim -talvez não consigamos salvar o nosso jeito cordial, católico, pessoal, que apesar de esconder autoritarismo, hierarquia, discriminação, poderia ser uma contribuição nossa à vida moderna, chata, cruel e sem afetividade das sociedades capitalistas. Tenho uma visão positiva da forma de ser dos brasileiros, como o Darcy Ribeiro do livro ``Ser Brasileiro". Nosso jeito de ser pode ser analisado como fruto do atraso, mas há muita coisa boa entre as coisas que sobraram aqui. Não sei se conseguiremos salvar as coisas boas, cordiais, do Brasil. Será que a inflação vai acabar?

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