São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 1995
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Educação religiosa

ISRAEL ISSER LEVIN

O direito ao ensino religioso deve ser algo indiscutível em qualquer sociedade democrática. Felizmente ficaram para trás os Estados que cerceavam o direito de acreditar e de praticar os ritos adequados a qualquer conjunto de crenças.
Estados totalitários que exigem toda a fidelidade do povo é que temem as religiões como se estas fossem concorrer em poder e prestígio com a ideologia ou a máquina burocrática do Estado. De resto, nós judeus temos toda a razão do mundo para pregar a liberdade religiosa, uma vez que, em nossa história, por inúmeras vezes tivemos nosso direito de crença ameaçado.
Basta lembrar dos selêucidas, que queriam nos impor os deuses gregos (dos romanos, que desejavam que adorássemos seus césares, ou ainda da Inquisição, que queimava nossos mártires) para que se tenha claro as razões de nosso amor ao direito de se ensinar livremente valores religiosos.
Daí a obrigar as escolas da rede estadual a terem ensino religioso vai, contudo, uma grande distância.
É importante que se diga que a idéia da imposição de um tipo de ensino entra em contradição com a liberdade de opção religiosa que deve ser uma escolha, antes, da família e, mais tarde, do próprio indivíduo. Num estado de composição extremamente complexa (felizmente), em que convivem adeptos das mais diferentes correntes religiosas, é fundamental que a escola, notadamente a pública, se apresente como um espaço de consenso e não de dissenso.
Não somos, é claro, contrários à educação religiosa, desde que feita no espaço de cada templo religioso e de forma voluntária. Há ainda as famílias que fazem a opção pelas escolas confessionais, o que nos parece válido e legítimo... para quem fez a opção.
Poder-se-ia argumentar que todas as religiões poderiam oferecer o ensino religioso nas escolas públicas. Isto seria de todo impossível. Imagine-se uma classe de 40 alunos dividida em 20 católicos, dois batistas, três muçulmanos, quatro espíritas, um judeu, dois adeptos da Igreja Universal do Reino de Deus, um mórmon e assim por diante.
Onde encontrar classes para colocar cada grupo com seus professores? Onde encontrar professores pedagogicamente preparados de acordo com o projeto educacional da escola e com os valores da religião a ser ensinada? E, finalmente, mas não por último, onde encontrar dinheiro para pagar os professores?
Na verdade, é de se temer que apenas uma religião, majoritária, acabe podendo desenvolver o seu trabalho de doutrinação, o que, salvo melhor juízo, entraria em contradição com postulados básicos de uma democracia moderna sobre a igualdade de direitos e sobre proibir-se qualquer tipo de discriminação, inclusive a religiosa.
Pode-se alegar que, mesmo na hipótese de aula de educação de uma única religião, assiste quem quer e quem não quer fica fora da aula. Contra esse argumento permito-me lembrar meu tempo de aluno de colégio de Estado, num tempo em que havia aula da matéria então chamada religião.
Quando o padre entrava na sala de aula e começava com uma oração, eu, que havia saído de uma partida de futebol ou de jogo de botão, eu, que me sentira até então como um do grupo, como um legítimo e integrado membro da comunidade de professores e alunos (e todos sabemos o quanto isso é importante para a criança ou para o adolescente), eu saía cabisbaixo, concentrado, o rabo entre as pernas, sentindo-me um estranho no ninho, um deslocado, de fora.
Já adulto, trocando lembranças com amigos de outras religiões minoritárias, vi que meus sentimentos eram partilhados por todos aqueles que tinham vivido experiência semelhante. Provavelmente por conta disso é que as aulas de religião se deslocaram da escola pública para os cursos junto às igrejas e templos assim como as escolas sabidamente confessionais.
Num país plural como o nosso, em que a luta contra a discriminação e o preconceito é condição essencial para a construção de uma grande nação efetivamente democrática, talvez convenha, antes de mais nada, lidar com os preconceitos que ainda afetam boa parte de nossa população em vez de, com a melhor das intenções, criar condições para acirrar os divisores já existentes no próprio lugar em que melhor deveriam ser combatidos: a escola.

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