São Paulo, quarta-feira, 2 de agosto de 1995
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Aids & drogas

AURO DANNY LESCHER

A gravidade dessa associação acaba por delatar uma histórica incompetência. A medicina, e mais precisamente a psiquiatria, antes do surgimento da Aids, não era capaz de abordar a toxicomania sem confundir dependência com psicopatia, dependente com delinquente.
A epidemia traz consigo uma indagação fundamental: Será que o farmacodependente é mesmo um ser inabordável? Ou será, de outro modo, que os instrumentos éticos e ópticos habitualmente utilizados para essa abordagem têm sofrido de severa miopia?
Em março de 1991, Claude Olivenstein, diretor do Centro Marmottan de farmacodependências de Paris, referindo-se à toxicomania, belisca a platéia em uma palestra: "Por mais paradoxal que isso possa parecer e por mais contraditórios que sejam os resultados, pode-se dizer que de certo modo o advento da Aids nos tranquilizou. Afinal temos ali os estigmas de uma verdadeira doença: testes, balanços biológicos, tratamentos de prevenção e boa consciência das associações de caridade."
A virulência biológica é também moral tanto na Aids como na farmacodependência. O sofrimento dos que perdem a liberdade em relação ao desejo, ao corpo ou à própria vida faz latejar nossa humana responsabilidade e nos impulsiona a agir.
Ação e alteridade, generosas ao diferente. A alma da solidariedade. Qualquer estratégia de prevenção deve operar segundo esse novo elemento ético, que condena a exclusão e que privilegia a nultiplicidade. As singularidades são imunológicas, psicodinâmicas, familiares, culturais...
Os programas de prevenção devem ir a campo, nas bocadas, nas zonas. Dispositivos institucionais tais como escolas, organizações de moradores, pastorais, universidade, mídia etc. têm responsabilidade na transformação das projeções sombrias dos estudos epidemiológicos, cuja função, sempre, é nos servir de alerta.
Não basta propor informações sobre sexo seguro ou sobre a desinfecção dos aparatos de injeção endovenosa, principalmente se tais informações forem passadas como quem propõe uma pedagogia do desejo: "aprenda a transar" ou "aprenda a se picar". Elas têm que estar acompanhadas de um trabalho de construção de solidariedade na atitude mais miúda do cotidiano da comunidade, na capilaridade social, o que supõe, necessariamente, esse trabalho realizado dentro de nós mesmos.
Tão elementar como fundamental, teríamos assim assegurado a eficácia de intervenções como a formação de agentes multiplicadores de prevenção, programas de troca de seringas, distribuição de camisinhas, discussões nos conselhos de escolas, hospitalização a domicílio, apartamentos terapêuticos ou quaisquer outras estratégias criativas que se desejasse implementar.

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