São Paulo, quarta-feira, 2 de agosto de 1995
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A quinta dimensão

Para o termo ``bacana" o Aurélio registra: ``Palavra-ônibus que exprime, encarecendo-as, inúmeras idéias apreciativas, e equivale a bom, excelente, belo, simpático, elegante, luxuoso, bem-educado, muito leal, inteligente, culto etc.". Nas ruas de São Paulo e de outras grandes cidades brasileiras, porém, ``bacana" pode significar coisas bem menos apreciativas como ``vítima de meu próximo assalto" ou ``o canalha que tem dinheiro enquanto eu vivo nessa miséria".
Essa cisão entre a linguagem oficial e a verificada em certos estratos sociais é apenas um sintoma do que Clóvis Rossi em sua coluna de ontem muito apropriadamente qualificou de ``limpeza étnica", numa referência à guerra civil que ocorre na Bósnia. Menos brutal, mas mais perversa, essa ``faxina" acontece lenta e silenciosamente, sem mobilizar protestos ou requerer a inútil presença de soldados da ONU.
As reflexões de Rossi foram ensejadas por dois artigos publicados nesta Folha: um de Luís Nassif, no último domingo, que trata do ``exército de cadáveres ambulantes (que) mataria os bons sonhos burgueses que trafegavam na região (o centro velho de São Paulo)", e outro de Marcelo Coelho, impresso em abril, que analisava a incomunicabilidade entre as classes médias e altas e os excluídos.
Como em todas as guerras, o combate se dá entre os ``diferentes", seja por falarem outra língua, seja por terem um aspecto físico diferente, seja por seguirem uma outra religião. No caso do Brasil, todos esses ingredientes estão presentes. Os excluídos falam um idioma cujas únicas intersecções com o português oficioso são ``me dá um trocado aí" e ``isto é um assalto". A desnutrição e os farrapos que envolvem seus corpos conferem aos miseráveis uma constituição física inconfundível. Enquanto os brasileiros ``normais" são católicos, protestantes, muçulmanos judeus ou ateus, o exército dos excluídos só pode praticar uma única religião, a mais universal delas, a da sobrevivência, instinto comum a quase todos os membros do reino animal.
O maior perigo dessa pérfida situação é as elites continuarem agindo como agem: tratar esse contingente cada vez mais numeroso como seres de uma quinta dimensão que estão apenas de passagem por este mundo de quatro dimensões e, em breve, retornarão a seu universo paralelo de origem.
Não, eles fazem parte deste mundo. Estão aqui para ficar. E, se nada for feito para dar-lhes uma perspectiva de existência digna, as consequências são imprevisíveis.

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