São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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`Desejo um ato institucional', falou Costa e Silva

JARBAS PASSARINHO

Manhã cedo, fui buscado em Brasília para a reunião marcada para o Conselho de Segurança Nacional. Viajei no mesmo avião em que, em Belo Horizonte, embarcaria o vice-presidente dr. Pedro Aleixo, que me pareceu tão pouco informado das ocorrências da noite anterior quanto eu.
Chegando ao Palácio das Laranjeiras, o vice-presidente foi levado diretamente ao presidente. Eu, ao general Portella, que, após breve relato do que ele chamou de noite árdua, disse-me:
- Temos de confiar no chefe. Ele dará uma resposta dura, mas a quer de curta duração. Precisa de apoio dos ministros civis. Já falei com o Delfim e o Beltrão e agora falo com você, por indicação dele. (...)
Eram 11h do dia 13 de dezembro de 1968. O presidente comparecera à cerimônia de formatura de guardas-marinha como se nada de anormal houvesse acontecido à noite. Preside, então, a reunião que marcara com os ministros militares, o chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações) e o ministro da Justiça. Pede inicialmente a opinião do ministro da Marinha, que responde laconicamente:
- Ato de força.
Os dois outros ministros, do Exército e da Aeronáutica, simplesmente repetem o que dissera o ministro Radmaker. Atrasado, chega o ministro da Justiça. O presidente, de bom humor surpreendente para o momento, lhe diz:
- Ministro, antes da hora não é hora; depois da hora muito menos, ensina o Exército.
Agitado, o nosso Gaminha tira da pasta uns papéis e começa a ler o que denomina de ``Manifesto à Nação", seguido de um ``draft" de um ato adicional. O ministro da Justiça parecia reencarnar a regência trina, no Império, a alterar a Constituição de 1824. O texto lido, porém, era tão drástico, que o ministro Lyra Tavares, também formado em direito, observa jocoso:
- Mas assim você desarruma a casa toda.
Provoca risos, a despeito da tensão reinante. O presidente corta a palavra do ministro Gama e Silva, dizendo-lhe:
- Não é isso que eu quero. Desejo um ato institucional. E mostra os itens que até então só eram do conhecimento do general Portella. Fica o ministro de lhe dar forma jurídica. Outra vez se voltava ao preâmbulo do Ato Institucional nº 1, em que se declarava que a revolução se legitimava por si só e se investia no poder constituinte.
Enquanto o ministro da Justiça se punha em campo, visando a dar cumprimento à determinação do presidente, é certo que este, prevenindo-se contra o radicalismo de seu auxiliar, mandou fazer consultas a juristas fiéis a 64.
Às 17h, o presidente abre a reunião do Conselho de Segurança, presentes todos os seus membros, o vice-presidente inclusive. À mesa de cada participante, já estava o texto do que seria o AI-5. Explicando rapidamente a necessidade de um ato de força para salvar a Revolução, pediu que lêssemos o proposto e retirou-se por 15 minutos, ao cabo do que retornou.
Ao ler o documento, escrevi no bloco de papel à minha frente, a lápis, à minha mulher e ao meu filho mais velho, a razão de eu ir apoiar o ingresso numa ditadura, eu, que me filiara à Revolução de 64 para manter as liberdades democráticas ameaçadas. Esse papel, amarelecido, tenho-o até hoje comigo. Minhas palavras escritas não são uma tentativa de esconder a minha responsabilidade, que a assumo integralmente, mas uma satisfação aos meus entes mais queridos que, pela idade, poderiam julgar o procedimento de seu marido e de seu pai. Os outros filhos eram menores.
Reiniciada a reunião, o presidente, sempre muito cordial com o dr. Pedro Aleixo, dá-lhe a palavra. O velho liberal mineiro, que já provara o exílio por opor-se ao golpe do dr. Getúlio Vargas em 1937, falou por cerca de meia hora. Sua discrepância era implícita. Não examinava o texto oferecido ao nosso exame. Ao revés, defendia a decretação do estado de sítio como solução adequada ao momento histórico. Foi muito digno.
Lembro-me de que, antes de terminar, foi aparteado pelo ministro da Marinha e pelo ministro da Justiça. Costa e Silva o ouviu em silêncio respeitoso. Passou-se à votação. Recordo palavras de Magalhães Pinto, talvez fruto de emulação inevitável com seu conterrâneo ilustre. Falou de seu passado de signatário do ``Manifesto dos Mineiros", contra a ditadura Vargas. Disse confiar, porém, no presidente e no seu senso apurado de justiça.
Outro que falou, rememorando fidelidade democrática, foi Hélio Beltrão. Referiu-se ao pai, um dos ardorosos fundadores da UDN, que igualmente combateu a ditadura Vargas. Rendia-se à circunstância e votava sim. Quando chegou minha vez de opinar, não me furtei às palavras comprometedoras. Talleyrand dizia que o sim e o não são palavras fáceis de dizer, mas que demandam grande reflexão, antes. Preferi não ser monossilábico. Disse, sem medo de mostrar que estávamos ingressando na ditadura:
- A mim me repugna, senhor presidente, enveredar pelo caminho da ditadura, mas já que não há como evitá-la, às favas os escrúpulos de consciência.
Atribui-se a Goethe a frase: ``Tudo seria perfeito, se pudéssemos fazer as coisas duas vezes". Eu não me beneficiaria disso. Hoje, se as circunstâncias fossem as mesmas, teria tido igual procedimento. Que restaria, como alternativa? Aliar-me aos arenistas que discrepavam do governo? Desertar do governo, abandonando o chefe que me havia conquistado a confiança, no exato momento em que ele mais precisava de nós? Contribuir para o enfraquecimento do governo, em face da guerrilha e do terrorismo? Quem só pensa na sua biografia, nos momentos mais difíceis, sacrifica, em geral, a lealdade que deve.
A menos que se tratasse um ato infame, cabia continuar prestigiando o presidente que eu aprendera a admirar. Nas ``Antimemórias", Malraux escreve: ``O que me interessa, num homem qualquer, é a condição humana. Num grande homem, são os meios e a natureza de sua grandeza. Num santo, o caráter de sua santidade".
O que eu admiraria cada vez mais, e isso iria avultar na sua conduta nas sessões de cassação de mandatos eletivos, seria a condição humana de Costa e Silva. Pode-se tentar ridicularizar a figura do ``ditador bonzinho", mas a história, quando escrita não pelos vencidos e ressentidos, mostrará a condição humana de quem não tinha a menor vocação de opressor.
Inaugurava-se um período dos mais atribulados de nossas história recente. Nela, Costa e Silva vai encontrar a morte, no auge de seu esforço para extinguir o regime de exceção que presidia.

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