São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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Americano contesta o ``país do futuro"

DANIELA FALCÃO
DE NOVA YORK

A aparente doçura, cordialidade e espontaneidade dos brasileiros esconde uma sociedade extremamente violenta e desigual, que pouco tem em comum com a imagem de paraíso que muitos estrangeiros ainda fazem do país.
Quem diz isso é o norte-americano Joseph Page, 55, professor de direito da Georgetown University (Washington) e autor do livro ``The Brazilians" (Os Brasileiros), que acaba de sair nos EUA.
Apesar das 540 páginas dedicadas ao Brasil e da comparação com o tratado que Luigi Barzini escreveu sobre o povo italiano -``The Italians"-, Page recusa o título de brazilianista. ``Não sou um especialista em estudos brasileiros. Sou um visitante que se apaixonou pelo país e que, ao longo de 30 anos, aprendeu que os brasileiros não são necessariamente o que aparentam", disse Page à Folha.
Page recusa o título de brazilianista, mas escreveu um tratado sobre o caráter dos brasileiros. ``Meu objetivo não foi o de criar debates no meio intelectual, embora ache que o livro traz algumas colaborações neste sentido. O que quis foi tornar a imagem do Brasil e dos brasileiros um pouco menos difusa para os norte-americanos."
Para isso, além de 16 viagens ao Brasil ao longo de 30 anos, Page leu aproximadamente 280 livros, entrevistou políticos como Miguel Arraes e Luís Carlos Prestes e passou horas em bibliotecas americanas e brasileiras.
Segundo Page, a interpretação equivocada do espírito brasileiro é resultado do deslumbramento que toma conta dos estrangeiros assim que chegam ao país. ``Aparentemente, tudo no Brasil parece ideal: a integração racial, a cordialidade do povo, a sensualidade explícita. Em vez de procurar entender o que se passa, projetamos nossas fantasias na sociedade e não percebemos que o brasileiro é mais complexo do que parece."
Para exemplificar o que diz, Page cita dois exemplos. No passado, lembra os esforços feitos para convencer os ingleses de que o país estava tentando acabar com a escravidão (quando não havia qualquer intenção concreta neste sentido) e que terminou gerando a expressão ``para inglês ver".
Em seguida, argumenta que a tão divulgada ``sensualidade natural" dos brasileiros, no fundo, esconde uma atitude extremamente repressora em relação ao sexo. ``Quem vai ao Rio ou Salvador durante o Carnaval sai com uma imagem completamente errada de como os brasileiros lidam com a sexualidade. Parece que tudo é permitido, que não há culpa. Só que não é bem assim. Na verdade, o Brasil é tão repressor quanto qualquer país católico."
Page conta que percebeu que o país não era o que parecia por acaso, em sua segunda visita ao Brasil, em 1964. ``Fui preso por engano pelos militares. Passei 24 horas no porão de um quartel em Recife e vi de perto a brutalidade usada contra os presos políticos. Foi um choque. Não imaginava que o brasileiro pudesse ser tão violento", lembra o professor.

Folha - Como surgiu a idéia de escrever ``The Brazilians"?
Joseph Page - É uma história que começou em 83, quando havia acabado de escrever um livro sobre Perón. Queria continuar escrevendo e decidi que seria sobre o Brasil. Pensei em fazer uma biografia sobre algum personagem da história brasileira, mas não encontrei nenhum que pudesse ser vendido para as editoras americanas. Pensei então em escrever 20 minibiografias sobre brasileiros que representassem o espírito do povo. Depois de conversar com meu editor, decidi ser mais ambicioso e tentar escrever um tratado sobre os brasileiros para estrangeiros.
Folha - Como os americanos vêem o Brasil hoje?
Page - A imagem do país está muito desgastada com as notícias de violência, principalmente contra crianças. A destruição da Amazônia também criou um mal-estar em relação ao Brasil. O número de americanos que visita o país diminuiu muito. Mas acho que quem vai, termina se apaixonando pelo país e pelo povo.
Folha - No livro, o senhor fala no espírito do malandro carioca e faz várias referências a Carmen Miranda. O senhor não tem medo de reforçar o estereótipo criado pelos americanos?
Page - Essa é uma questão complicada. Símbolos como Carmen Miranda ou a figura do malandro parecem incomodar muito os brasileiros. Mas poucos americanos sabem dizer se Carmen é brasileira ou cubana e, menos ainda, o que significa a malandragem. Entendo a preocupação dos brasileiros quando essas figuras são evocadas, mas acho que se faz muito barulho por nada.
Folha - Como assim?
Page - Para o estrangeiro, o brasileiro é alegre, cordial, bem-humorado, como traços da personalidade de Carmen Miranda ou do espírito do malandro. Mas isso não significa necessariamente que sejam indolentes ou irresponsáveis.
Folha - O senhor diz que os brasileiros estão perdendo o otimismo, que sempre foi uma marca registrada do país. Isso é irremediável?
Page - Não. Há algum tempo o otimismo anda em baixa, e isso é óbvio para quem está de fora. Mas os brasileiros têm uma capacidade enorme de se auto-regenerar. Se a economia melhorar, o otimismo volta.
Folha - O senhor diz que, apesar de otimista, o brasileiro sempre carregou um sentimento de inferioridade que chegou a atrapalhar seu desenvolvimento. Como isso aconteceu?
Page - O sentimento de inferioridade atrapalhou a industrialização porque os brasileiros não conseguiam acreditar que os produtos fabricados no país tinham tanta qualidade quanto os importados. Pelo que eu sei, isso mudou muito pouco.
Folha - Em várias passagens o senhor comenta o chavão ``Brasil, país do futuro", que traria a idéia de que, no século 21, o Brasil substituiria os EUA como potência econômica. O que deu errado com o país, que ele ainda não conseguiu vislumbrar este futuro?
Page - Não sei ainda se deu errado. Os brasileiros têm mania de se autodepreciar e de fazer brincadeiras como a de que o futuro do país nunca chegará ou de que o Brasil é a terra de ilimitadas impossibilidades (em vez de ilimitadas possibilidades). Claro que a situação é difícil. Para que o Brasil virasse uma potência, a industrialização deveria ter acontecido quase 30 anos antes, quando o custo da mão-de-obra e da tecnologia eram muito mais baratos. O país ainda pode virar uns Estados Unidos, mas hoje o mais provável é que os EUA virem o Brasil.
Folha - Como assim?
Page - Os EUA estão passando por um processo de empobrecimento sério. O número de mendigos nas ruas cresce a cada dia, a pobreza entre crianças é alarmante e as diferenças entre ricos e pobres se acentuou muito no fim da década passada, como aconteceu no Brasil nos anos 70.
Folha - No livro, o senhor afirma que o Brasil é hoje o maior fabricante de miséria mundial. Não é um pouco de exagero?
Page - Não sou eu quem estou dizendo, são as estatísticas. A cada seis segundos, um bebê brasileiro morre de diarréia. A cada 30 minutos, alguém pega tuberculose e dados do Banco Mundial apontam o Brasil como o país em que há maior desigualdade social no mundo.
Folha - O senhor afirma que a abundância de recursos naturais colocou o país à beira de um desastre ecológico. Como assim?
Page - Os brasileiros herdaram dos portugueses o sentimento de que a terra continuaria produzindo tudo o que precisassem, sem que fosse necessário investir nela. Isso é fruto de uma colonização de exploração num país com recursos naturais em excesso. Os brasileiros se comportam em relação à terra da mesma maneira que os exploradores portugueses de 500 anos atrás. Se não houver uma mudança radical nessa postura, é obvio que, em breve, todo o sistema entrará em pane.
ONDE ENCOMENDAR
O livro ``The Brazilians", de Joseph A. Page (Addison-Wesley Publishing Company, US$ 27,50) pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Cj. Nacional, tel. 011/285-4033, São Paulo)

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