São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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Invenções de brasilidade

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Qual seria o mais genuíno dos brasileiros?
Macunaíma? Carmen Miranda?
Nem ele, nem ela, segundo Joseph A. Page. Tampouco Pelé ou Ayrton Senna. Zé Carioca, nem pensar: foi invenção gringa, malandro importado. Votaria no Tom Jobim, mesmo sabendo que ele, infelizmente, foi um brasileiro mais exemplar que genuíno. Page passou por perto, escolhendo o parceiro de Tom. Para ele, quem melhor representa o nosso jeito de ser é Vinicius de Moraes. Com aquele charme e seu modo, ao mesmo tempo direto e descompromissado, de se relacionar com a vida, Vinicius só podia ter nascido no Brasil, garante em seu livro o mais recente dos brasilianólogos.
Fomos, primeiro, o país das mais soberbas belezas naturais (``Se algures na Terra existe o Paraíso, não pode estar longe daqui", proclamou Américo Vespúcio). Depois, o éden dos escroques (``Vá degradado para o Brasil, donde tornará rico e honrado", prometeu, em 1618, o frei Vicente do Salvador). Com o passar do tempo, empacamos em dois estereótipos: viramos o país dos contrastes (apud Roger Bastide) e do futuro (apud Stefan Zweig).
Com os contrastes sempre aumentando, o futuro distanciou-se ainda mais. Esta é a tese de Page, que no entanto nos admira tanto quanto os adventícios que o precederam na árdua tarefa de nos observar e entender.
Árdua, mas fascinante. Bastide viu-se obrigado a abrir mão de seus conceitos de sociologia, trazidos da Europa, para entender nossas misturas (antigo & novo, negro & branco, branco & índio, miséria & opulência, carnaval & melancolia); e acabou sugerindo que, em lugar de noções rígidas, outras, de certo modo líquidas, capazes de descrever fenômenos de fusão, de ebulição, típicos de uma realidade viva, em perpétua mutação, fossem criadas.
``O sociólogo que quiser compreender o Brasil não raro precisa transformar-se em poeta", arrematou Bastide. Vinicius, vale lembrar, era poeta.
Zweig era quase isso. Quase. Sua seara era a prosa, ficcional e biográfica; talvez a causa do diagnóstico equivocado que a nosso respeito fez, quase 60 anos atrás. Fugindo de um continente grávido de ódio e ressentimentos, achou o Brasil um Xangri-lá de harmonia, tolerância e compassividade. Não muito diferente daquele sonhado pelo orwelliano protagonista do filme ``Brazil" -o de Terry Gilliam, aqui exibido em meados da década passada, e não aquele, dirigido por Joseph Santley, que Ary Barroso foi musicar em Hollywood, nos anos 40.
Foi atrás dessa utopia que não apenas Zweig, mas também outros, meros viajantes curiosos, aqui vieram bater em épocas ainda mais remotas. E nos acharam loquazes (John Mawe, início do século passado), corruptos e venais (Daniel Parish Kidder e J.G. Fletcher, meados do século passado), hospitaleiros, conservadores e avessos à violência (James Bryce, início deste século), simpáticos e preguiçosos (John Gunther, anos 30), alegres e prazerosos (Jack Harding, anos 40).
Antes de conhecer o Brasil ao vivo e a cores, Claude Lévi-Strauss o imaginava como um feixe de palmeiras torneadas, envolto por um odor de incenso, pormenor olfativo fornecido pela homofonia entre Brasil e brasido, sinônimo de braseiro. Nunca mais se libertou dessa impressão. Ao voltar para a França, ainda se lembrava de nosso país ``como um perfume queimado". Levou melhores impressões daqui que o escritor inglês Evelyn Waugh, que também nos anos 30 andou por nossas matas em busca do impossível.
Seduzido pelas andanças de seu conterrâneo Peter Fleming por Goiás e Marabá, Waugh foi bater em Boa Vista, na floresta amazônica, supondo nela encontrar um enclave urbano, ornado de bulevares, quiosques com flores, hotéis com terraços floridos e igrejas barrocas do século 17. Horrorizou-se com o que efetivamente lá existia: muito calor, vendinhas infectas e cerveja quente. E nunca mais voltou. Nem sequer para visitar aqueles lugares onde, conforme alardeava o cartaz de ``Voando Para o Rio", contemporâneo de sua passagem por Boa Vista, ``lindas mulheres escravizam o seu olhar à luz de milhões de estrelas".
Me lembrei desse chamariz enquanto ciceroneava o escritor John Updike por alguns pontos turísticos do Rio, três anos atrás. Ele concordou. Foi, aliás, pensando nas lindas mulheres que contemplara na praia de Copacabana, que criou a heroína de seu romance, ``Brazil". Seu livro, como agora o de Joseph A. Page, não trouxe qualquer contribuição nova ao repertório de visões que sobre nós têm os estrangeiros. Updike nos achou ``cool", descontraídos. Mais um sinônimo eventualmente capaz de explicar por que ainda continuamos à espera do futuro.

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