São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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A guerra do `Cânone Ocidental'

JOÃO ALMINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos anos 80, a universidade de Stanford, na Califórnia, iniciou um debate sobre o cânone, que levou à retirada da palavra ``ocidental" de um curso sobre cultura. Foi um escândalo que gerou debates acalorados na imprensa americana. Uma das líderes da reforma foi a professora Mary Louise Pratt, do departamento de espanhol e português daquela universidade.
Pratt é uma das mais brilhantes defensoras do multiculturalismo e da expansão do cânone e -esteja claro desde o início- não toma partido contra o universalismo, embora o critique tal como apropriado pelas instituições acadêmicas. Ou seja, conforme ela diz, ``o chamado universal... tem sido um discurso localmente europeu nas instituições acadêmicas, embora hoje teóricos não-europeus tenham embarcado em muitos esforços locais para romper o monopólio europeu sobre a categoria do universal". Para ela, ``nada tem enriquecido o estudo da literatura contemporânea mais do que as mudanças de paradigma dos últimos 20 anos".
Já para a professora Marjorie Perloff, do departamento de inglês da mesma universidade, essas mudanças foram ``bobas", substituindo uma lista estreita por outra ``igualmente canônica", em que Toni Morrison toma o lugar de James Joyce e, por critérios étnicos, raciais ou de gênero, grandes autores russos como Dostoievski e Tolstoi ficam de fora. ``É obrigatório incluir Virginia Woolf, mas não Hoelderlin, pois é homem e branco."
Através da criação de ``falsas divisões" e da manipulação de métodos marxistas simpáticos aos ``oprimidos", valoriza-se, segundo ela, uma insignificante literatura chicana de autores que mal conhecem o espanhol, ao mesmo tempo em que se negligencia a literatura latino-americana. ``O critério multicultural serviu para trazer à tona alguns bons escritores esquecidos", mas teria ido longe demais e prejudicado o reconhecimento dos que ``não se encaixam" nas categorias criadas.
O professor Charles Altieri, do departamento de inglês de Berkeley, tem um livro sobre o tema do cânone e já escreveu um artigo sobre a obra de Harold Bloom, o autor do muito comentado ``O Cânone Ocidental" (Mais! de 6/8/95), publicado o ano passado nos EUA (e que tem lançamento previsto no Brasil amanhã, pela editora Objetiva). Para ele, a atenção acadêmica ao multiculturalismo é necessária, pois uma sociedade diversificada deve procurar entender suas várias tradições.
``Mas não devemos confundir informação com arte ou, pelo menos, com a melhor arte...", ele diz. ``Concordo com Bloom que a maneira como as instituições acadêmicas têm lidado com o multiculturalismo tem sido danosa à literatura, mas não por causa do multiculturalismo. O problema surge apenas quando confundimos o que precisamos conhecer sobre os outros com as melhores criações individuais em diversos grupos. Há até boas razões para ensinar arte medíocre, que nos ajuda a aprender sobre os outros, desde que saibamos o que estamos fazendo."
Segundo Altieri, embora distintas culturas tenham produções desiguais, o interessante é ``como podemos aprender a imaginar de formas diferentes com diferentes culturas e, então, tentar várias maneiras de combiná-las. Certamente, a ficção e a poesia latino-americanas têm mais a ensinar neste final do século 20 do que o trabalho norte-americano, mas, como Borges diria, isto pode ser porque estiveram mais em contato com a Europa", bem como, acrescenta, por causa de seus contextos sociais e políticos. ``Mas não vejo por que não se possa apreciar Neruda e Ashbery para propósitos bem diferentes."
O professor de Berkeley diz ``desprezar" Harold Bloom porque ``ele arroga a si a autoridade sem trabalhar cuidadosamente as idéias que formam a base de seus julgamentos e estariam sujeitas ao debate, se ele, Bloom, pudesse vir a respeitar qualquer outra pessoa". Para Altieri, precisaríamos falar sobre cânones e discutir como esta necessidade pode ser atendida, mas ``é errado construir um cânone específico".
Marjorie Perloff concorda com este ponto de vista e tampouco gosta do livro de Bloom. Para ela, até poderia fazer sentido um cânone negativo (listagem do que não precisa ser lido), para que não se perca tempo com ele. ``Eu aumentaria em uma milha o cânone de Bloom", que omite obras de real significação, de autores como Hoelderlin, Rilke, Balzac, Baudelaire e Stendhal, apenas citados nos apêndices. Bloom defende, segundo ela, do lado oposto do multiculturalismo, uma visão extrema. Melhor que fazer um cânone fechado, seria manter uma perspectiva histórica e aberta.
Dupla ironia: que, de um lado, se faça uma arraigada defesa do cânone ocidental num país, no fundo, com pouca tradição intelectual; e que, de outro, uma dada leitura de filosofias européias da moda -especialmente de Foucault e Derrida- tenha fornecido o fundamento teórico para os que pregam, em nome da ``diferença", a expansão do cânone para além da cultura dita ocidental.
Há equívocos de um lado e outro. Alguns defensores do Ocidente não percebem que os cânones necessariamente mudam com o tempo a partir de novas percepções e interpretações e que quem lê apenas dez ou 20 livros em sua vida, mesmo que fossem a essência da melhor tradição e cultura, terá provavelmente pouca capacidade de assimilá-los. Procuram, além disso, restabelecer um passado improvável em nome de um presente fantasmagórico. Na realidade, até hoje, os cursos de cultura (qualificada de ocidental ou não) nas universidades americanas continuam centrados nos ``homens brancos mortos".
Universalistas de plantão e ardorosos defensores de um cânone são, às vezes, tão particularistas que não enxergam além de seus próprios umbigos. Outras vezes, são provincianos, ao ponto de acreditarem que a universidade é exclusiva de uma cultura imutável, além de étnica e geograficamente centrada -Mary Pratt tem razão ao denunciar o monopólio sobre a categoria do universal. Certamente, o provincianismo não é exclusivo das culturas não européias, assim como os valores universais não são necessariamente ocidentais. Não pode existir um cânone objetivo pela mesma razão pela qual é contestável a universalidade de valores totalitária e centralmente ditados por quem quer que seja.
Por outro lado, a ampliação do cânone, defendida pelos multiculturalistas, não deve se dar em nome do relativismo e da defesa tacanha dos particularismos, sejam eles geográficos, raciais, étnicos ou de gênero, mas de uma maior abertura e cosmopolitismo. O multiculturalismo deve, além disso, reconhecer a possibilidade do transculturalismo e dos valores comuns e universais.
É importante, por exemplo, aceitar como universais os valores democráticos e o princípio do direito. Até os índios de Chiapas se rebelam, defendendo direitos e falando em democracia, utilizando, portanto, como fundamento, valores da cultura ocidental precisamente para preservar suas próprias tradições.
O critério para a inclusão de uma obra no cânone -se cânone houver- não deve ser o de que ela seja específica desta ou daquela cultura. Nem que essa inclusão é necessária para equilibrar a representação de culturas. Na realidade, melhor critério seria buscar obras que transcendem as culturas específicas, pela profundidade com que captam a realidade particular, a capacidade com que transmitem a percepção deste particular a outras esferas e a excelência de sua realização formal.
Uma literatura confinada a gênero, etnia ou raça, por definição, restringe seu próprio escopo e campo de visão. Seria diminuir sua importância, definir como feminista a literatura de uma Virginia Woolf, Katherine Mansfield ou Clarice Lispector; ou como negra a literatura de um Derek Walcott ou de um Lima Barreto.
Pode ser válido e necessário que autores se afirmem através desse tipo de rubrica para pôr em primeiro plano a dimensão política de uma luta específica. Tal luta pode ser válida e necessária. Mas cabem aqui tanto a distinção feita por Altieri entre informação e arte quanto o ataque de Bloom ao frequente ressentimento dessas literaturas confinadas.
Quer se retire a palavra ``ocidental" dos cursos de cultura, quer se considere que o verdadeiro parâmetro para os cânones é uma razão universal, a principal batalha a ser travada não é entre os valores da cultura ocidental e um multiculturalismo bárbaro; entre um suposto universalismo e o multiculturalismo. Mas entre ser tacanho e aberto, provinciano e cosmopolita.

O LIVRO
``O Cânone Ocidental", de Harold Bloom. Com 26 ensaios do crítico americano sobre autores clássicos da literatura universal. Ed. Objetiva (r. Cosme Velho, 103, tel. 021/205.7824, CEP 22241-090, Rio de Janeiro). 556 págs. Lançamento previsto para amanhã

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