São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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FRONTEIRAS DO HUMANO

MARIO VITOR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK

Oliver Sacks é um neurologista voltado para a pesquisa do poder criativo da doença. Seu interesse é a capacidade de adaptação e recuperação do indivíduo à falência do cérebro.
Nos sete casos médicos descritos em ``Um Antropólogo em Marte", cuja edição brasileira, em tradução de Bernardo Carvalho, sai agora pela Companhia das Letras, os personagens são pessoas cujas limitações conduzem ao desenvolvimento exponencial de novas linguagens.
As sete histórias de ``Um Antropólogo em Marte" evocam a rotina de pessoas que vivem de maneiras especiais. Seis vivem bem no mundo normal, de maneira anormal. Uma está no hospital.
As sete histórias tratam de um pintor abstrato que acaba se adaptando a uma total cegueira de cores provocada por um acidente automobilístico; um hippie cego, cuja memória parou nos anos 60, sendo totalmente amnésico para o que ocorreu depois; um paciente de síndrome de La Tourette, cirurgião atacado por severos sintomas, tiques, esperneios e gritos incontroláveis, que realiza operações bem-sucedidas e é respeitado como um especialista; o homem cego de Oklahoma que não se adapta à visão recuperada depois de uma cirurgia vitoriosa; um cozinheiro italiano em San Francisco que, depois de um surto, se transforma num pintor compulsivo voltado para reminiscências detalhadas de sua cidade natal, que há muito não visitava; o jovem autista inglês que consegue sem nenhum esforço fazer reproduções minuciosas e originais de prédios complicados como a catedral de Notre Dame, publicadas em diversos livros, e, por último, Temple Grandim, autista, doutor em ciência animal, especialista de fama mundial em métodos menos dolorosos para o manejo de gado em matadouros.
Noções de ``saúde" e ``doença" se confundem durante os relatos. Aqui e ali, tem-se a sensação de que, quanto mais doente e ausente a pessoa fica, mais criativa e genial ela se torna, embora talvez ela não perceba isso.
É o livro em que o autor, um inglês que vive nos Estados Unidos, mais cultiva uma linha de investigação "biográfica das doenças de seus pacientes, consequência de um trabalho de imersão no caso médico, de envolvimento e fusão com a personalidade do doente, de humanização da prática médica.
Sacks escreve num estilo que tem algo das histórias de Sherlock Holmes, de Borges, do Umberto Eco ficcionista. Seu texto tem registro eclético, concilia e permuta conhecimentos de diferentes áreas e platéias: ciência e arte, leigos e especialistas. Pode-se lê-lo como uma científica ficção.
Ex-aluno de Oxford, ele era -e em parte ainda é- considerado um pária na corporação médica, que entretanto o ignora cada vez menos. Nascido em Londres em 1933, estudou também na Califórnia e em Nova York.
Depois de um curto período pesquisando minhocas, empregou-se no Beth Abraham Hospital, no Bronx. Obteve fama com "Awakenings ("Despertando, na edição brasileira que saiu pela Imago), que deu origem ao filme "Tempo de Despertar, com Robert de Niro e Robin Williams (este no papel do próprio Sacks, com outro nome no filme).
A obra conta o caso real de 20 pacientes pós-encefalíticos, que depois de 40 ou 50 anos, dependendo do caso, despertam de uma espécie de sono, quando lhes é administrada a droga L-dopa. O filme prende a atenção, mas reduz a labiríntica e paradoxal descrição dos casos a um drama banal entre o médico (Williams) e um dos doentes (De Niro).
Inspirado no livro de Sacks, o dramaturgo inglês Harold Pinter escreveu a peça "A Kind of Alaska (Uma Espécie de Alaska). Encenada em 1982, a peça aborda a condição de uma das pacientes, que ao acordar perdera metade da vida vagando em estado letárgico. O que viveu -ou não- não pode ser contado, inexistem meios para expressar, falta sentido ao mundo.
O livro seguinte, "O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, fez imenso sucesso nos Estados Unidos. O título refere-se à história real de um homem que teve afetada sua capacidade de reconhecimento de feições faciais, inclusive as da própria mulher. Deu origem a uma peça de Peter Brook, "The Man Who..., encenada no semestre passado em Nova York.
Em "Um Antropólogo em Marte há a mesma ênfase na descrição dos limites da natureza humana. Sacks faz os relatos com jeito de showman, feliz em cortejar algumas analogias estéticas cheias de erudição, que remetem a citações de Joyce, Mondrian, Shakespeare, Locke, Borges ou Magritte.
O neurologista recebeu a Folha em seu escritório, no Greenwich Village, em Nova York. De bermudas, camiseta do Jardim Botânico e sandálias, por causa do calor de 40 graus. Ali, depois de declarar seu fanatismo pela série de TV "Jornada nas Estrelas (um traço que também o une a muitos autistas), ele falou sobre como é ser uma espécie de artista da amnésia, investigador do autismo e emissário das e nas cegueiras.

Folha - Em seu livro, as obsessões e outros mecanismos mentais aparecem como manifestações de um cérebro original, ancestral, primitivo. O que o sr. vê nesse túnel do tempo?
Oliver Sacks - Enquanto você diz isso, eu penso no cirurgião do livro que tem síndrome de Tourette e age assim (Sacks levanta a perna), o que o faz parecer com um animal marcando seu território, um comportamento primitivo, talvez pré-humano. Eu acho que carregamos nossos ancestrais conosco. Existe uma condição neurológica muito rara que afeta o céu da boca. Algumas vezes, ela se manifesta por movimentos regulares e ritmados, algumas vezes no ouvido, outras na garganta. Por que isso acontece? Tem a ver com quê? Diz-se que não faz sentido, mas faz, porque são áreas remanescentes das guelras. O que se vê é um movimento de guelras, de um peixe.
É interessante perceber que os controles biológicos de guelras ainda existem em nós, embora tenhamos deixado a água há cerca de 200 milhões de anos. Num nível menos extremo, o paradoxo da condição humana é que tanta coisa em nós é tão primitiva! Freud certa vez comparou as neuroses a uma paisagem jurássica.
Folha - Em seus livros, transparece a intenção de integração entre um homem civilizado e suas pulsões ancestrais. É como se o sr. tentasse algo assemelhado à psicanálise. Existe qualquer coisa como neuroanálise?
Sacks - Por exemplo, essas duas crianças que não enxergam cores que vou visitar hoje. Não farei uma visita médica. Eu sei o diagnóstico. Eu sei a condição de seus olhos. Eu quero saber como elas vivem, experimentam, se adaptam, fazem compensações. Se você se tornasse subitamente acromatópico (incapaz de perceber cores), ficaria muito prejudicado, porque depende muito das cores, sem que perceba. Descobriria outras maneiras de organizar e imaginar o mundo.
Alguém com mal de Parkinson, por exemplo, pode empregar centenas de horas tentando descobrir como dar um simples passo. Um paciente meu não conseguia se levantar, enquanto ele não começasse, em sua imaginação, a escalar uma árvore pintada num quadro ao lado da cama. Só então ele se levantava.
Folha - O comportamento de alguns desses pacientes parece explorar certos limites físicos e convenções sociais...
Sacks - Provocar parece ser a palavra mais adequada. Gostaria de sair pelo país com um amigo que tem síndrome de Tourette, junto com seus colegas de doença, para vê-los em outros contextos sociais. Às vezes, ele é expulso de restaurantes, especialmente os japoneses, onde parece haver menos tolerância, quando ocorre qualquer violação do espaço pessoal. Assim (ele faz que me dá um soco), por exemplo. Em Amsterdã, ele é encarado com humor. Quem sabe, podemos ir ao Brasil, para ver como é a reação lá? Pode ser muito engraçado, mas pode ser sério.
Na primeira vez que vi Shane, um paciente de Tourette que mora em Toronto, quando passávamos diante de um restaurante, ele percebeu que, lá dentro, uma mulher comia um cheeseburger, o queijo escorria pelo pão. Ela ia começar. Ele entrou no restaurante, pegou o sanduíche dela e deu uma mordida (risos). Ela morreu de susto e depois explodiu numa risada. Foi só. Mas podia ter chamado a polícia.
Folha - Por que o sr. escreve sobre esses distúrbios da mente?
Sacks - Porque eu preciso. Ouço relatos estranhos, maravilhosos, trágicos, às vezes engraçados. As pessoas me entregam suas vidas, isso estimula minha imaginação. Acho que escrever tem a ver também com dividir. A primeira coisa na minha cabeça é procurar explorar a experiência eu mesmo.
Folha - É verdade que o sr. já pôs fogo em manuscritos e que um de seus melhores livros perdeu-se dessa maneira?
Sacks - Tanto que agora tudo é copiado e nada sai daqui do escritório. O manuscrito original de ``Despertando" também foi perdido, mas por sorte um amigo tinha uma cópia. Na verdade, foi destruído.
Folha - Por quê?
Sacks - Eu voltei-me contra ele. Comecei a ficar confuso a respeito de publicar aqueles depoimentos. Naquela época, mais do que hoje, eu tinha sentimentos confusos a respeito de escrever expondo a vida das pessoas e talvez, também, de expor-me como um autor faz. As palavras ``publicar" e ``punir" (``publish" e ``punish", em inglês) confundiam-se em minha mente e eu, em parte, lidei com esses sentimentos, perdendo manuscritos. Agora, as fotocopiadoras têm grande papel em minha vida.
Folha - Seu trabalho refere-se ao fenômeno das reminiscências. O sr. alude à ``síndrome de Dostoievski" e em seu livro há referências a escritores como Proust, Flaubert e vários outros ``colecionadores de reminiscências". As obras deles parecem conformar, se vistas de um determinado ângulo, um compêndio medicinal. É assim?
Sacks - Num certo sentido. Eu realmente penso no mundo como um hospital.
Folha - E nele haveria a enfermaria dos artistas?
Sacks - Na maioria das vezes, neurologistas tratam de pacientes com alguma queixa. As pessoas aparecem dizendo que têm dor de cabeça, ou seja o que for. Não vêm para reclamar do talento, da arte, da sensibilidade. Muito pouco tem sido explorado sobre a neurologia do talento, do gênio. Apesar disso, deve haver estruturas e arranjos no sistema nervoso que inclinam as pessoas nesse sentido. Eu adoraria saber o que acontece no sistema nervoso de um ator. Eu posso ver claramente em meus pacientes que a arte tem o poder de retirá-los de certas condições neurológicas. Como o cirurgião do conto ``Uma Vida de Cirurgião", que se afasta de sua síndrome de Tourette (Carl Bennett, o ``personagem", tem uma síndrome caracterizada por tiques convulsivos, imitações involuntárias ou repetições de palavras ou gestos dos outros) quando está operando. Mas eu não gosto da idéia de patologizar artistas ou o passado. Eu acabei de receber uma carta de uma escritora, Kay Redfield Jamison, que vê essa patologia em todo canto, vê todo artista com o problema.
Folha - O sr. escreveu que Robert de Niro, quando ensaiava seu papel em ``Tempo de Despertar", parecia estar vivendo transformações neurológicas reais, como que provocando uma síndrome em si mesmo. O que o sr. gostaria de saber sobre a neurologia de um ator?
Sacks - De Niro tem extraordinários poderes de representação e observação, num nível muito profundo e não-verbal. Ele pensa com o corpo. Representação é tão profunda nele, que se transforma numa espécie de encarnação. De um lado, eu não penso que seja possível alguém atuar tanto que vire um doente de Parkinson. Num certo sentido, tudo o que eu escrevo é uma tentativa de imaginar o inimaginável. Eu não acho que nenhuma dessas condições neurológicas possa ser imaginada ou representada. Mas, tendo dito isso, eu mesmo fui tão tomado por algumas das atuações naquele filme que, em algum ponto, eu não percebia mais o que eram. Eu dizia ``Meu Deus, ele pegou".
Folha - Tudo está misturado no seu livro: personagens, pesquisa, tratamento médico e teatro. Seus pacientes parecem ser vistos como caminho para uma outra busca.
Sacks - Algumas pessoas, meus pacientes ou outras que me escrevem, dizem que, até lerem o que escrevo, elas não sabiam que estavam tão doentes e que também não tinham percebido que estavam tão bem. Os poderes da doença são fontes para lidar com o inexplorado. São minha delicada esperança, embora exista sempre o perigo de eu estar exigindo muito das pessoas. Quando eu era mais jovem, eu tendia a me lançar e deixava de perceber sentimentos obscuros que minha atividade desencadeava.
Folha - Hoje o sr. está então mais cuidadoso?
Sacks - De certa maneira, sim. Mas, tendo dito isso, lembro-me de que uma das histórias do livro (``O Último Hippie", sobre Greg F.) relata o momento em que eu pus um espelho diante do rosto daquele homem amnésico de 50 anos que acreditava ter 19. Ao ver sua expressão de espanto, eu me senti como um monstro, embora soubesse que ele iria esquecer.
Folha - O sr. é uma pessoa sozinha, não tem família, é estrangeiro. Qual a relação entre esse afastamento e sua atividade?
Sacks - Embora eu tenha um anseio por pertencer a algo, eu também gosto do sentimento de liberdade do ``outsider". Eu já não sei o que é um lar. Por outro lado, acho que não sou um estrangeiro hostil, mas um ``alien" fascinado, solidário. Penso que isso tem a ver com meu interesse pela alienação. Já que falei de ser estrangeiro, gosto muito de ser rotulado. Tenho camisetas de diferentes jardins botânicos, que troco o tempo todo. É uma identidade botânica.

Continua à pág. 5-5

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