São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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FRONTEIRAS DO HUMANO

Folha - No conto ``Ver e Não Ver" (sobre Virgil, cego durante 45 anos, que, de maneira trágica, fracassa em se adaptar a ver, depois de uma operação nos olhos aparentemente bem-sucedida), impressiona o fato de que a aquisição de um sentido como a visão acabe resultando negativa para o paciente. O sr. diria que, no caso de pessoas que não enxergam cores e eventualmente passem a vê-las, a mesma confusão poderia ocorrer?
Sacks - Eu imagino que sim. Como você sabe, com o personagem da primeira história, Jonathan I. (retratado no conto ``O Pintor Daltônico"), o pintor que perdeu o sentido da cor, pensamos, três anos depois, que poderíamos retreiná-lo para que recuperasse esse sentido. Ele não quis. Disse: ``Se vocês tivessem oferecido isso para mim imediatamente (após o acidente que provocou um coágulo em seu cérebro), quando eu ansiava pela cor, eu teria aceito. Agora, meu mundo está completo sem isso, tudo foi reconstruído, eu não quero cor. Seria apenas confusão".
Eu visitei uma mulher que era acromatópica em San Francisco e fiquei fascinado pela biblioteca dela. Metade dos livros era sobre o mundo à noite, o mundo em que ela vive. A outra metade era toda sobre cor, inclusive uma enciclopédia de nomes de cores e metáforas de cores, porque ela tinha que ter um bom conhecimento teórico de cores, de modo a não dizer nada inapropriado num mundo que consegue enxergar cores.
Folha - Como o pintor, no primeiro conto de ``Um Antropólogo em Marte", que perdeu a sensibilidade das cores, mas ainda tinha a tabela de tons Pantone na memória...
Sacks - Talvez seja similar. Mas, assim como Temple Gradin (autista, PhD em Ciência Animal, inventora, retratada no conto ``Um Antropólogo em Marte" e que teve que aprender como as pessoas normais sentem e expressam afetos), que é "socialmente cega e precisa ter um enorme conhecimento teórico do comportamento das pessoas, o mesmo acontece com pessoas que não distinguem cores. E têm que aprender desde crianças, porque senão as outras crianças na escola ririam delas. Têm que decorar as cores das coisas, embora não as vejam. Têm que aprendê-las teoricamente.
Folha - Decora-se que um lápis provavelmente escreve em preto.
Sacks - E que o céu é azul. E há também uma frase em inglês que diz "out of the blue, para designar algo inesperado. No início da vida, há sempre uma espécie de colisão com os pais, especialmente a mãe, para obter descrições visuais precisas de um mundo que eles não podem ver, e não podem imaginar visualmente.
Se você ler a autobiografia de Helen Keller, verá que ela é repleta de descrições visuais. E não se pode esquecer que ela é uma mulher totalmente cega e que perdeu a visão tão cedo que não guardou nenhuma imagem e para quem uma bela descrição visual das cataratas de Niagara, por exemplo, são apenas palavras. Quando criança, eu gostava de ler Prescott (William H., 1796-1859, historiador americano, melhor conhecido por suas "História da Consquista do México e "História da Conquista do Peru), de ler sobre os incas. E de ver o Peru através de seus olhos, o texto é tão vívido. Foi um choque para mim quando vim a saber que para efeitos práticos Prescott era cego. Ele não apenas nunca tinha visto o Peru, mas era realmente cego. É intrigante pensar em que medida a imaginação e talvez a linguagem possa substituir a experiência.
Folha - O sr. recebeu alguma reclamação de Virgil ou de outros pacientes?
Sacks - Não. Temple gostou muito. E de fato quando ela me apresentou numa conferência no Colorado, ela disse: "Eu sou a antropóloga em Marte. Não tenho tido contato com Virgil. A essa altura, ainda especulo como ele se sente, porque sua volta à cegueira foi algo muito trágico.
Folha - No caso de Virgil, o sr. presenciou seus piores momentos...
Sacks -Eu gostaria de ter presenciado os melhores também.

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