São Paulo, segunda-feira, 14 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O dr. Egas, o latim e o feitiço

JOSUÉ MACHADO

Numa boa catilinária em latim contra o governo, "Ave, Caesar Fernandus", publicada no dia 7 de agosto nesta Folha, Hélio Schwartsman lembra que do século 15 ao 18 os autores utilizavam essa língua para registrar passagens picantes ou termos vulgares; pretendiam poupar vergonha às mulheres, em geral iletradas. Naquele tempo, claro, porque agora são sabedoras.
Bem mais tarde, e também para não envergonhar leigos, o neurocirurgião Egas Moniz (1874-1955), um português sábio, ora pois, usou o latim em muitos trechos de seu livro "A Vida Sexual", de 1906. Nesses trechos descreveu exemplos de anomalias e perversões sexuais. Algumas de arrepiar. Outras, que podem ser apreciadas hoje até na novela das oito ou nos filmes leve ou pesadamente safados exibidos por emissoras de TV. Egas morreria de vergonha se cá hoje vivesse; nos tempos dele, de puritanismo vitoriano de fachada, sacanagem só ao vivo ou em latim.
Safadezas à parte, recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina por ter desenvolvido em 1927 a angiografia cerebral, que permite evidenciar a circulação cerebral mediante a injeção de um meio de contraste na artéria carótida e, em 1948, por ter introduzido o método da lobotomia pré-frontal no tratamento da esquizofrenia e da paranóia. Isso sim, uma verdadeira safadeza atualmente em desuso.
O que não está em desuso é o fetichismo, que descreve entre as patologias da vida sexual, junto com bestialidade, exibicionismo e outras perversões menos votadas. Importa aqui é a palavra fetichismo, que o dr. Egas condenou por ser galicismo e preferiu feiticismo.
Fetiche de fato é galicismo. É proveniente do português feitiço. O francês chupou o português, no bom sentido, internacionalizou a palavra e a devolveu com a acepção de ídolo, objeto de veneração supersticiosa; em medicina, campo do dr. Egas, perversão sexual em que o paciente associa as suas sensações eróticas a uma parte da pessoa amada ou a objetos de uso dela: o nariz, o calcanhar, os sapatos etc.
A forma feitiço nesse sentido, proposto por ele e por outros puristas, não colou. Feitiço manteve-se como sinônimo de malefício, sortilégio, bruxedo, encantamento. Do latim "facticio", coisa feita, preparada artificialmente. Por isso, como adjetivo, feitiço significa artificial, fingido, falso, postiço, fictício. Quase todos os partidos políticos brasileiros, por exemplo, são feitiços. Não convém dar exemplos para não ser repetitivo. Mas agora está surgindo um novo por aí, soma do peperrê, do pepê e do petebê, que talvez seja ideológico, saudável, dos bons.
Viva o dr. Egas Moniz, um português sabichão.

Texto Anterior: Instituto mede radiação do sol na atmosfera
Próximo Texto: O fumo e a morte prematura
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.