São Paulo, segunda-feira, 14 de agosto de 1995
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Que gafe!

JOÃO SAYAD

Os ingleses são fleumáticos. Falam com elegância e discrição dos assuntos mais delicados. Os japoneses têm dois discursos diferentes: o ``honnê", a conversa da verdade nua e crua, e o ``tatemae", o discurso oficial, onde os temas mais difíceis são contornados. Os brasileiros são oblíquos -não tratam dos problemas difíceis diretamente. Parecem espontâneos, mas os problemas cabeludos, conflituosos, são apenas tangenciados, contornados ou esquecidos. Já os americanos são cândidos (no sentido inglês da palavra), falam tudo na bucha, diretamente. Seriam considerados inconvenientes pelos brasileiros. Só os americanos poderiam ter inventado os cursos de educação sexual.
Tudo isso me vem à cabeça a propósito das discussões sobre a reforma tributária, que agora ganham momento e calor. Será que ajuda falar das coisas com clareza, à americana, ou é melhor continuar discutindo à brasileira? Tenho muitas dúvidas sobre o valor da chamada ``verdade" na hora de discutirmos problemas cabeludos e quase insolúveis. Corro o risco de estar sendo inconveniente, falando demais na hora errada, cometendo uma gafe.
A reforma tributária começou a ser discutida em 1974 e acabou se realizando em 1988, na nova Constituição. É bom não esquecer esses 14 anos. Queríamos descentralização tributária -``ninguém vive na União, todos vivem no município". A União e os Estados deveriam concentrar seus gastos nas áreas sociais -o que resultou na vinculação de 50% da receita tributária em gastos de educação, saúde e desemprego, e numa imensa complicação para o governo federal administrar suas contas. No início de 1994, o governo aprovou o Fundo Social de Emergência, que nada mais é do que um esforço para conseguir alguma capacidade de remanejar suas receitas, muito amarradas a gastos específicos. Foi um feito memorável, fruto de muita habilidade política e poder de persuasão. E com um nome -``fundo social"- brasileiro e oblíquo.
Desde 1991, com o ministro Marcílio, a reforma tributária passou a ser a tábua de salvação nacional. Fiesp, CUT, Federação do Comércio, cidadãos de boa vontade, em momentos de crise se reúnem e propõem a reforma tributária que salvará o país. Hoje, em 1995, ``os juros só podem cair depois da reforma fiscal".
A discussão, entretanto, é oblíqua, tem armadilhas, não é conversa para criança. Um americano não entenderia nada. Um inglês pigarrearia e mudaria de assunto. Até os japoneses teriam dificuldade em classificá-la: ``honnê" ou ``tatemae"? O deputado Kandir afirma de manhã, na Jovem Pan, que vamos ter um imposto sobre o valor adicionado. Mas o Brasil adotou o imposto sobre valor adicionado em 1965, 30 anos atrás, quase que conjuntamente com a Europa. Somos moderníssimos, para quem gosta do termo, nesse assunto. Na realidade, imposto sobre o valor adicionado é simplesmente a reunião de dois impostos sobre valor adicionado -o ICM e o IPI. Como isso vai salvar o país?
Os empresários querem redução do número de impostos. Temos 50, segundo eles. Quais? Eu conheço só nove: IPI, ICMS, ISS, ITR, IRPJ, IRPF, Cofins, e PIS-Pasep. Desses, são ruins apenas a Cofins e o Pis-Pasep. Impostos que incidem sobre o faturamento, em cascata. Causam ineficiências, atrapalham as exportações, são injustos. Mas o governo federal arrecada uma fortuna com esses impostos indesejáveis e precisa muito desse dinheiro para comprar reservas internacionais e pagar juros extorsivos no mercado interno. No momento, não é possível abrir mão desses impostos.
O ministro Mailson afirmou aqui nesta coluna que o ICM não é um imposto perfeito sobre o valor adicionado, porque não inclui os serviços. Não entendi. O setor de serviços paga ISS sobre salários, lucros, juros e aluguel, ou seja, paga um imposto sobre valor adicionado. Energia elétrica e petróleo pagam imposto sobre valor adicionado. Não vejo onde está a incidência em cascata. E nada a corrigir no ICMS, que aliás ganhou o ``S" de serviços em 1988.
E a sonegação? Existe uma proposta bem-intencionada do deputado Luis Ponte: tributar somente os setores que têm poucos contribuintes e são facilmente controláveis: energia elétrica, petróleo, química, bebidas e cigarro. Mas é inviável, a menos que fiquemos com a energia elétrica e o petróleo mais caros do mundo, e nossa indústria perca completamente a competitividade.
Desculpem a falta de educação, mas como combater a sonegação num país em que, como em todos os países do mundo, existe hoje alta mobilidade de capital? Quer dizer, como combater a sonegação e tributar as grandes fortunas num país em que se pode transferir dinheiro rápida e facilmente para o Caribe, Luxemburgo, Suíça e outros paraísos fiscais? Transferência sem impostos, sem ilegalidade. Como evitar a sonegação ou a evasão fiscal? Não sei. Mas fica claro que a idéia de usar o sistema tributário para melhorar a distribuição de renda é cada vez mais difícil. Lembrem da França socialista do Mitterrand 1º, da Inglaterra socialista antes da terrível Thatcher. Não funcionou. Temos de ser mais criativos nesse mundo globalizado. Mas o professor Paulo Nogueira Batista tem razão -não é preciso reformar a Constituição para combater a sonegação.
Vale a pena ler o excelente livro ``Cidadãos, uma Crônica da Revolução Francesa``, de Simon Shamma. Lá se conta com detalhes como a França aristocrática queria resolver uma enorme dívida contraída, entre outras razões, para financiar a Revolução Americana. O ministro Turgot, fisiocrata, tinha idéias revolucionárias e impossíveis de aplicar -liberar todas as barreiras alfandegárias da França, tornar a França um grande mercado unificado e tributar apenas a produção e a propriedade. Parece o plano dos ministros e presidentes superliberais. Não conseguiu inclusive por causa da reação dos mais pobres que tiveram de enfrentar preços mais altos e falta de abastecimento. A esperança dos franceses, monarquistas e revolucionários se voltava para Necker, um ministro protestante de Genebra e bem relacionado com os bancos (o ministro Marcílio?). Também não conseguiu. Calone, seu sucessor, reuniu uma Assembléia de Notáveis para analisar a proposta de reequilíbrio orçamentário. Um fiasco. Cortaram as mordomias da corte -cargos honoríficos de cozinheiro, arrumador de cama do rei, desarrumador de cama da rainha, acendedor de candelabro, apagador de candelabro do palácio de Versailles etc. Igual aos nossos cortes de carro de autoridade, casa de ministro e outras bagatelas. Também não funcionou. Os jacobinos eram todos jornalistas -Marat, Robespierre e Danton. Radicais, puritaníssimos, donos da verdade. Acabaram todos guilhotinados pelo terror que eles mesmo inventaram. A exceção foi Marat -morreu assassinado na banheira. Alguns revolucionários, que, entretanto, apoiavam o rei, como Mirabeau, na hora da discussão radicalizavam e viravam demagogos, complicando a solução. Lembrei imediatamente da proposta de imposto único -que considero demagógica e vinda de ``revolucionários" de direita. E que hoje pode virar a CMF.
Ler o livro é um prazer e um terror -tudo parece com a discussão brasileira sobre reforma tributária. Jornalistas radicais, conservadores demagogos, ministros salvadores da pátria, revolucionários endossando propostas monarquistas, pobres preferindo o sistema antigo ao novo pela confusão que se criava.
Dá para tirar uma lição útil para o semestre que se inicia no Congresso. É melhor não complicar muito. Vamos inventar uma forma de desonerar as exportações, que é fundamental para recuperar o saldo do balanço comercial e, portanto, o Plano Real... Mas vamos deixar o resto para depois. Para tempos mais calmos, discussões menos jacobinas. Afinal de contas -desculpem a gafe- o nosso sistema tributário não é tão ruim assim. E pode ficar pior.

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