São Paulo, segunda-feira, 14 de agosto de 1995
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Como não transformar o sucesso em fracasso

NOENIO SPINOLA

O governo vem pagando entre R$ 0,12 e R$ 3,24 por saca de soja a quem queira levar os estoques que é obrigado a receber por conta da política de preços mínimos. A história começa com o plantio da safra de 1994/95. Como as cotações de mercado caíram este ano durante a colheita, os agricultores resolveram entregar a soja ao financiador.
Sem dinheiro para estocar, a Conab leiloa a mercadoria armazenada pagando um ``prêmio de remissão". Ou seja, o sucesso de uma supersafra transformou-se em mais um problema financeiro repassável aos cofres públicos.
A soja é um retrato quase fiel de um fantástico paradoxo aplicável a todo o cenário agrícola brasileiro -quanto maior a safra, maior será, potencialmente, a dor de cabeça do Tesouro Nacional. O Brasil não é diferente do resto do mundo: os agricultores europeus também colocam tratores nas ruas e os produtores do meio-oeste americano são igualmente barulhentos. É preciso ver por que somos mais propensos a transformar sucesso em angústia.
O sistema atual de leilões evita que o governo acumule estoques, reduzindo perdas por má administração, fraudes nos armazéns, roubo, troca e deterioração de produtos. Em muitos casos, as perdas com estoques públicos chegam a 30% ou mais. Este ano, portanto, houve um avanço técnico, mas os leilões estão longe de resolver todos os problemas da comercialização.
Exceto em café e boi, inexistem mecanismos internos para a venda futura de produtos agrícolas com liquidez suficiente, isto é, com um bom número de negócios em pregões abertos. Os preços são fixados no balcão, entre comprador e vendedor, muitas vezes tomando a bolsa de Chicago (CBOT) como referência.
Como as safras do hemisfério sul (Brasil) e do hemisfério norte (EUA, Europa) ocorrem em épocas diferentes do ano, os preços descobertos nas bolsas estrangeiras às vezes desviam violentamente dos praticados por um produtor em Ijuí, Uberlândia ou até mesmo Rosário (Argentina). Esse desvio, que em economês chama-se ``abertura de `spreads"', chega a US$ 60 por tonelada.
O ``spread" é vantajoso para quem tenha capacidade técnica de arbitrar preços (tomando posições simultaneamente compradas e vendidas em diferentes mercados). Mas representa também um enorme risco para quem não estiver aparelhado para trocar de lado com a velocidade e a precisão exigidas nos pregões supercompetitivos de commodities do exterior.
Ora, o Mercosul é o segundo maior produtor de soja. O Brasil é líder em laranja, em café, invadiu espaços exportando frangos congelados, é líder em produção de cana-de-açúcar, em álcool, tem o segundo maior rebanho bovino.
Apesar de contar com tantos pontos a favor, o interior do país está fervendo. A renda agrícola não melhora e o salário é comprimido na fazenda para manter a roda girando. Na hora de pensar na nova safra, outro paradoxo: a indústria de insumos vê com surpresa que os pedidos aumentam, mas o clima pessimista dificulta os cadastros.
A razão para tantos desencontros está no discurso dos agricultores e de todos os que insistem em soluções isoladas e segmentadas para a área agrícola. Tome-se o caso do trigo: em 1970 uma tonelada desse grão valia US$ 250. Hoje, está em torno de US$ 160. É possível que dentro de dez anos valha US$ 120.
Porém, uma tonelada do mesmo trigo transformada em massas alimentícias pode valer US$ 1.800. Lições a aprender: em média, três quartos do valor final dos gêneros alimentícios entram no preço depois que a matéria-prima sai da fazenda. Gerar um emprego ao lado da porteira custa US$ 5.000, contra US$ 50 mil em regiões metropolitanas densamente povoadas. Ficamos com o quê?
As lideranças empresariais brasileiras somente irão emparelhar com os concorrentes estrangeiros se atuarem em conjunto, propondo medidas e estratégias para fixar mais indústrias e mais estocagem no interior e evitando o jogo dos sete erros que caracteriza a descoberta de preços no Brasil.
O assunto é polêmico e chegou até a ser incluído em uma proposta de debate pela Secretaria de Assuntos Estratégicos do Planalto. Essa discussão foi aberta no tempo do ministro almirante Mário Flores e passa pelo papel das ``clearings".
Talvez Brasília esteja esperando por uma estabilidade efetiva do Real para ampliar os espaços internacionais dos mercados brasileiros pois quaisquer medidas nessa área reverberam automaticamente no comércio exterior e no câmbio. Mas é possível, também, que as resistências decorram de dificuldades de avaliação técnica e da incapacidade para conciliar interesses regionais.
O mapa continentalmente espalhado da soja e de outros produtos é a melhor evidência de que não há como um Estado ou uma instituição pública ou privada monopolizar propostas. Resultado do impasse: na hora em que a agricultura explode e o comércio exterior rateia, há mais freios que rodas.
Faltam contratos, falta arbitragem técnica, faltam instrumentos coordenados de crédito, os volumes gigantescos do ``trade" intimidam os estamentos mais provincianos e até propostas engenhosas para adotar opções no lugar dos sistemas tradicionais de preços mínimos são vistas com suspeita.
Se o quadro continuar travado na próxima safra teremos mais um sucesso e uma coleção de campeões do fracasso. Como disse em editorial esta Folha, a riqueza financeira e a pobreza rural continuarão convivendo de forma iníqua.
Esse cenário não interessa mais nem mesmo às multinacionais que aprenderam a conviver com as imperfeições brasileiras, arbitrando preços e taxas de juros com grande agilidade, atuando como ``quase bancos", mesmo ao preço de riscos altíssimos para os acionistas controladores nas matrizes.
No lado otimista, cresce o consenso de que a modernização dos métodos de comercialização no Brasil é questão de tempo. O assunto está em debate na Sociedade Rural Brasileira, na Abiove, na Associação das Indústrias de Açúcar e Álcool, na BM&F, entre cooperativas etc. Trata-se de um quebra-cabeças que só será resolvido se todas as peças forem rearrumadas harmoniosamente.

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