São Paulo, segunda-feira, 14 de agosto de 1995
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A lista de Schindler

ALEXANDRE GAVRILOFF

Seria dramático afirmar que o presidente FHC está com uma lista de Schindler em suas mãos? O livro do jornalista Thomas Keneally, ``Um Herói do Holocausto", em um de seus momentos mais singelos, narra o encontro entre Schindler e seu contador, Itzhak Stern. Itzhak cita um verso do Talmud: ``Aquele que salva a vida de um homem salva a vida do mundo inteiro". A partir dessa idéia, Schindler salva centenas de vidas ao empregar pessoas em sua fábrica durante a Segunda Guerra.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados formulou recentemente um apelo ao Brasil para que examine a possibilidade de acolher uma parcela dos 5.000 refugiados da ex-Iugoslávia. A decisão está nas mãos do presidente FHC. Essas pessoas fazem parte do contingente de refugiados que não está encontrando pousada na Europa. O inverno se aproxima e essa população corre um sério risco.
O que o Brasil tem a ver com a crise da Bósnia? A ONU, em seu caráter universal, a Otan, em seu caráter regional, e o Vaticano, em seu caráter religioso, têm acumulado dificuldades na tentativa de pacificação. Isso sem contar a Cruz Vermelha e outras inúmeras ONGs.
A região é habitada pelos sérvios, croatas, eslovenos, macedônios, albaneses, bósnios, muçulmanos e outras 17 minorias étnicas, sendo a mais numerosa a montenegrina. O conflito é complexo, envolvendo rivalidades étnicas e antagonismos religiosos, políticos, territoriais, agravados em centenas de anos.
Os sérvios que vivem na Croácia e na Bósnia não aceitam as idéias separatistas dos croatas, bósnios e eslovenos. Essas divergências, somadas a uma complexa teia de outras, deram origem a uma guerra civil, na qual os sérvios foram apoiados pelo exército da antiga Iugoslávia, gerando um conflito sangrento e cruel que a cada dia mais se agrava, sem que uma solução a curto prazo configure seus contornos.
Quarta-feira passada, o jornalista de 29 anos John Schofield, da BBC de Londres, morreu na Croácia enquanto realizava uma reportagem. Desde o início do conflito 76 jornalistas deixaram suas vidas nos Bálcãs. A Cruz Vermelha informa sobre numerosos casos de suicídio entre os refugiados sérvios. Mark Cutts, do ACNUR, informa que os refugiados estão aterrorizados.
Quinta-feira última a ONU revelou fotos de valas de terra revirada onde foram enterrados 2.000 civis bósnios, que eram prisioneiros dos sérvios. Outra região, a estrada entre Zagreb e Belgrado, antes conhecida como elo de fraternidade e união, está estigmatizada como rota da morte e do desespero.
Deve o Brasil assistir impassível ao cruento antagonismo dos Bálcãs?
O general brasileiro Newton Bonuma comanda 700 oficiais de ``capacetes azuis" sediados em Zagreb. A nação brasileira assistiu aflita a um desses oficiais ser tomado como refém pelas forças sérvias na Bósnia e suspirou aliviada quando da sua libertação. As PMs estaduais enviaram 200 homens para integrarem as forças de paz da ONU. A participação brasileira deve restringir-se apenas a essas ações, sob o pretexto de termos problemas sociais?
O Brasil, que aspira ingressar no Conselho de Segurança da ONU, pode reduzir a sua atuação ao cumprimento formal de acordos militares?
Está nas mãos do presidente da República uma lista de Schindler, e ele não deve tomar essa decisão sozinho. Salvar esses seres humanos é uma decisão que deve ser tomada pelo povo brasileiro como um todo. O Brasil deve mostrar ao mundo que é uma nação pacifista, humanitária, confiável e comprometida com a paz e segurança internacionais.
A nação brasileira deve mostrar às outras que, apesar de graves problemas sociais, desequilíbrios regionais, carências sanitárias e educacionais, é uma nação magnânima e generosa.
Cabe agora ao povo brasileiro tomar a atitude de contribuir para a pacificação dos Bálcãs: através da sua serena e sábia participação junto à ONU e pelo oferecimento de abrigo aos povos que procuram um porto seguro longe de suas pátrias. Cabe aos brasileiros manifestarem ao seu presidente sua vontade soberana, assegurando-lhe a certeza de estar assumindo a decisão correta.
É chegada a hora de uma grande decisão nacional, em que todos os brasileiros possam se amalgamar em seu espírito de bondade e formar uma grande corrente humana de solidariedade, certificando inequivocamente o presidente FHC que os cidadãos da ex-Iugoslávia, que escaparam com vida da atrocidade da guerra civil, podem encontrar no Brasil um reduto de paz, para recomeçar suas vidas, reerguer seus lares e criar seus filhos, engrandecendo esta terra como sua segunda pátria.
E os nossos problemas sociais internos? Devemos abraçá-los também nessa cruzada de solidariedade. Esta nação é por demais grandiosa e hospitaleira.
Para solucionar as nossas questões internas não precisamos nos amesquinhar, negando guarida aos povos oprimidos. Nosso território é vasto e ainda pouco explorado. Nossas credenciais são a bondade e a não-discriminação religiosa, racial ou política. As soluções para os nossos problemas certamente ganharão novas luzes diante de um gesto grandioso.
É hora de aproveitarmos a corrente de bons sentimentos para potencializar a força criativa do nosso povo, chamando inclusive a atenção das nossas elites para a sua enorme responsabilidade nesse processo. Nossa referência deve ser a floresta, não o arbusto esquálido.

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