São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Brasília se divide entre patriotas e suspeitos

JOSIAS DE SOUZA; LUCIO VAZ

Desmoronamento da máquina federal ao longo dos anos tornou promíscua a relação entre público e privado
Apinhado de ex-consultores privados, o Executivo está na fronteira entre o aético e o imoral
JOSIAS DE SOUZA
Diretor-executivo da Sucursal de Brasília
Guardião do cofre central da União, Murilo Portugal, secretário do Tesouro Nacional, costuma definir o órgão que dirige de forma peculiar. Ele diz: ``O Tesouro é o brasileiro em pé, no ponto de ônibus".
Murilo completa: ``Cada vez que alguém tira dinheiro do Tesouro, está enfiando a mão no bolso desse brasileiro". As frases foram pronunciadas há dois meses, numa mesa de restaurante.
O secretário do Tesouro raciocinava em tese, sem a preocupação de relacionar sua definição a qualquer fato específico. Apesar do descompromisso, produziu um raciocínio atemporal.
Suas palavras valem para a Brasília de ontem, do escândalo do Orçamento, e para a capital de hoje, às voltas com a fracassada operação-hospital montada para salvar o Banco Econômico.
Entre os personagens que movimentam o cotidiano de Brasília, muitos não conseguem enxergar nos cofres momentaneamente controlados por Murilo Portugal o bolso do cidadão comum. Boa parte vê o Tesouro como uma seara sem dono.
A confusão é tão identificada com o Planalto Central quanto a vegetação tortuosa típica do cerrado. Nem sempre se manifesta na forma de um grande negócio, como o que envolve o Econômico.
Pode materializar-se também numa emenda de parlamentar ao Orçamento, utilizada para drenar recursos públicos para o atendimento de necessidades privadas. Ou ainda na indicação de um afilhado para determinado cargo público.
Tome-se o exemplo da disputa pelas estatais telefônicas, subsidiárias da Telebrás espalhadas pelos Estados.
Ao indicar alguém para a presidência de uma ``tele", o parlamentar nem sempre é movido pelo interesse público. O deputado Francisco Silva (PP-RJ), por exemplo, indicou o amigo Eduardo Cunha para a presidência da Telerj, a telefônica do Rio. Seu apadrinhado já havia ocupado o posto no governo Collor.
A explicação do deputado para a indicação, afinal rejeitada pelo ministro Sérgio Motta (Comunicações), é ao mesmo tempo singela e reveladora.
Ele elogia o trabalho pregresso de Eduardo Cunha e emenda: ``Para nós, deputados, foi a melhor gestão. A gente chegava lá, pedia a ligação de uma linha, um orelhão. Ele manobrava e atendia em uma semana."
Ao ``manobrar" para atender o interesse dos parlamentares, o afilhado do deputado pode ter violentado o interesse público. Pode ter cometido um atentado contra o cidadão comum da metáfora de Murilo Portugal.
Brasília ofereceu, nos últimos dias, um outro portentoso exemplo da simbiose entre público e privado que permeia a Esplanada dos Ministérios. O caso Dallari é a síntese do desmoronamento da máquina pública.
José Milton Dallari, o ex-xerife dos preços, iniciou sua carreira em Brasília numa época em que os presidentes ainda vestiam farda. Era subordinado de Delfim Netto, então czar da Economia.
Delfim conta que, à época, importou Dallari de São Paulo. O Estado investiu na sua formação. Fez de Dallari o que Delfim, hoje deputado pelo PPR paulista, chama de ``funcionário exemplar".
Aviltaram-se os salários no serviço público. Burocrata de carreira, Dallari percorreu um caminho trilhado por dezenas de funcionários públicos. Deixou Brasília e montou escritório de consultoria em São Paulo.
Hoje, desaparelhado, o Estado requisita o auxílio de vários Dallaris. Apinhado de ex-consultores privados, o Executivo está na fronteira entre o aético e o imoral.
A hipocrisia salarial do Estado produz ainda casos como o de Clóvis Carvalho, chefe do Gabinete Civil da Presidência.
Ex-vice-presidente das Indústrias Villares, Carvalho recebia vencimentos que equivaliam a R$ 20 mil, sem mencionar vantagens indiretas.
Hoje, pendurado no organograma do Estado, recebe pouco mais de R$ 7.000. Para não comprometer o nível de vida de sua família, consome as reservas financeiras que diz ter acumulado. Sempre que revela a decisão, o ministro é fitado com uma ponta de suspeita.
Numa Brasília em que o bolso do cidadão fictício de Murilo Portugal é bulido a cada decreto, a cada emenda, a cada medida provisória, há patriotas e suspeitos. O difícil é distinguir um do outro.

Colaborou LUCIO VAZ, da Sucursal de Brasília

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