São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TV de rabo a cabo

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

No conto "A Lição", do escritor húngaro Karinthy Frigyes, um problema com o projetor do Céu obriga São Pedro a passar, do fim para o começo, o filme da vida de um recém-suicida. Em consequência, o mortal vive novamente sua existência terrena, mas desta vez em marcha a ré, narrada por Karinthy com raro humor e ironia.
As TVs a cabo passam um mesmo filme várias vezes durante o mês. Essa saudável prática dá ao assinante várias oportunidades de ver a produção que o atrai. Se a primeira tentativa é abortada por um telefonema ou visita inoportunos, o usuário pode assistir ao que falta na próxima sessão, ou mesmo ao longo de várias delas, um pedacinho a cada vez.
Às vezes, por mero acaso, vê-se primeiro o fim de um filme e, a cada nova exibição, o trecho imediatamente anterior. Resultado: fica-se conhecendo a história na sequência inversa. Ao permitir esse exercício de "desconstrução", a TV a cabo confere -como Karinthy- novos matizes a temas surrados.
Imagine-se alguém que viu "Blade Runner" de trás para a frente, em várias etapas, contando a história. De início, o precavido herói Deckard (Harrison Ford) leva a andróide Rachael (Sean Young) para fora de Los Angeles, afastando-a do risco de extermínio.
Aliviado, Deckard se põe a perseguir os demais replicantes, e -maquiavélico estrategista- começa pelo líder Roy Batty, deixando acéfala a rebelião. Em seguida, os perigosos Pris e Leon caem no sono dos justos, ficando por último a mais "facinha", a inofensiva e escamosa dançarina das cobras. Como se vê, há mais lógica e sensatez do que na versão original.
Missão cumprida, o gozador Deckard apresenta-se ao chefe, que faz papel de trouxa ao mandá-lo fazer um trabalho já terminado. O chato é a história não ter um "happy beginning": Rachael -que reaparece, apesar do perigo- e Deckard se gostam cada vez menos, e, justo quando somem todos os obstáculos, passam à total indiferença. Não deixa de ser, de certa forma, um final mais moderno.

Texto Anterior: "Por que tiraram do ar `Os Imigrantes'?; "Globo: onde está `Os Simpsons'?"; "`Malhação' denigre os roqueiros"
Próximo Texto: Em drama argentino, quem chora é o público
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.