São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Saudades da escravidão

PAULO PEREIRA DA SILVA

Os mártires de Chicago -cujo enforcamento há mais de cem anos, em um dia 1º de maio, consagrou o Dia do Trabalhador- deram suas vidas na luta pela jornada de trabalho de oito horas em uma época em que se trabalhava até 18 horas diárias, mulheres e crianças inclusive, sem direito ao descanso semanal remunerado, férias, assistência de saúde, indenização em caso de dispensa ou aposentadoria.
Cada um desses direitos, no Brasil e no mundo inteiro, foi conquistado pelos trabalhadores com muito esforço. Os trabalhadores lutaram anos, décadas e mesmo séculos para consagrar em leis princípios como o da irredutibilidade do salário ou o salário mínimo, fixado de forma a garantir, ao menos, a sobrevivência do trabalhador e de sua família.
E se a luta para fazer as leis foi grande, a luta para que elas sejam cumpridas foi e ainda é muito maior pois, de Figueiredo a FHC, ainda não tivemos um presidente capaz de explicar como se sobrevive com um salário mínimo.
Essas reflexões vêm a propósito da campanha deflagrada contra o instituto do tíquete-refeição e das refeições-convênio, que hoje beneficiam 8 milhões e 80 mil trabalhadores em todo o país através do PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador).
Autoridades do primeiro escalão do governo federal, alguns parlamentares e jornalistas passaram a criticar o programa, defendendo sua extinção ou, o que praticamente dá no mesmo, o fim dos subsídios fiscais às empresas que fornecem tíquetes a seus funcionários.
Antes de analisarmos os argumentos dessas pessoas é interessante verificar que nenhuma delas têm ou deve ter tido problema para se alimentar com o dinheiro que recebem. Além de gordos salários, dispõem de verbas de representação, refeitórios -e mesmo luxuosos restaurantes- nos locais de trabalho, além de banquetes e mordomias.
Assim, é indisfarçável o caráter elitista das críticas que fazem. Dizem, como disse o presidente do Banco Central, Gustavo Loyola -aliás, o responsável pelas mais altas taxas de juros do mundo-, que no lugar do tíquete ``os trabalhadores deveriam receber salário e definir como gastá-lo".
É mesmo? Mas será que os tíquetes não foram introduzidos no Brasil exatamente porque os salários não mais eram suficientes sequer para repor as energias, entenda-se comida, para que a força de trabalho se recomponha e se reproduza? Quem vai fazer os empresários brasileiros, em grande parte portadores de uma herança escravocrata, aumentarem os salários diretamente na folha de pagamento, com reflexos em suas obrigações acessórias?
Quem vai pôr o guizo no pescoço do gato? O senhor Loyola, que não consegue sequer resistir às pressões dos especuladores para que os juros caiam do patamar em que se encontram?
Para quem não sabe, o sistema de refeições-convênio surgiu na França. Se lá foi um instrumento de justiça social, aqui nem isso chega a ser e sim, ao lado da cesta básica, uma fórmula para que o trabalhador de baixa renda possa, em primeiro lugar, comer e, em segundo lugar, comer sem a humilhação de recorrer ao fogareiro e à marmita em um canto de fábrica, como um pária segregado da convivência dos que podem comer com garfo e faca, guardanapo, prato limpo e comida feita na hora.
Para os que argumentam com o subsídio, basta dizer que o valor da renúncia fiscal do governo com o PAT é de ínfimos R$ 13,5 milhões, isto é, apenas 0,6% do total de renúncia fiscal que em sua maior parte beneficia apenas latifundiários, usineiros e especuladores.
Dividida a quantia pelos mais de 8 milhões de trabalhadores que se utilizam do sistema, o governo beneficia cada um com R$ 1,53, infinitamente menos do que o Ministério da Saúde precisa gastar com os doentes atingidos pela subnutrição. Além disso, de acordo com a lei, o valor dos tíquetes é corrigido pelo Índice do Custo de Vida.
O sistema de tíquetes deve ser aperfeiçoado, ter controles mais rígidos para evitar intermediações desonestas, mas não pode ser extinto enquanto o Brasil for o país que tem os impostos da Suécia, os preços do Japão e os salários mais baixos que os de Bangladesh.
Apesar de salário indireto, o tíquete tornou-se vital para os trabalhadores de categorias menos organizadas e com menor poder de fogo, mas é também importante para as maiores, como metalúrgicos e bancários.
Se for para acabar com o tíquete, será melhor voltarmos aos tempos da escravidão: como o escravo, além de força de trabalho, representava um bem de capital, tinha ao menos garantidas três refeições por dia. Garantia que querem retirar do assalariado invocando, por incrível que pareça, a tal modernidade.

Texto Anterior: Olho no Gingrich
Próximo Texto: Batalha no gramado; Caso Dallari; Econômico; Nocaute; Caça à borboleta; Encargos trabalhistas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.