São Paulo, quarta-feira, 23 de agosto de 1995
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Furor emancipatório

MARIO CESAR FLORES

Em 1987 eram 4.180 municípios; em 1993, 4.973 (um aumento de 19% em seis anos), com mais 210 criados aguardando instalação (162 no Nordeste e 30 no Norte!) e 197 previstos serem criados, de acordo com informações das Assembléias Legislativas. Dos 4.973 existentes em 1993, 1.067 tinham menos de 5.000 habitantes e 3.611 (73%), menos de 20.000.
O que explica essa evolução? Seriam os reclamos da consciência cívica de autodeterminação local dos escassos habitantes de distritos rurais molestados pela centralização espoliadora praticada pelas sedes municipais?
Seria o sentimento de que a emancipação induz vantagens para a comunidade local, na participação constitucional dos municípios em receitas da União e dos Estados, nos programas assistenciais e de desenvolvimento conduzidos pela União ou, em algumas regiões, nos royalties do petróleo?
Seria a criação de cargos de prefeitos (e vices), vereadores (pela Constituição, no mínimo nove por município!), secretários, assessores etc., frequentemente remunerados em incoerência com a pobreza local? Ou seria uma combinação dessas motivações?
A primeira delas, quando verdadeira, é justa, mas é improvável que ela seja normalmente a principal porque não é comum um alto senso de participação comunitária nas populações rurais dispersas. A segunda precisa ser analisada caso a caso porque, embora ela aparente significar justiça distributivista, se o divisor cresce sem aumento do dividendo o resultado tende a se tornar muito pequeno -o que é irrelevante para os municípios de boa receita própria, mas é dramático para os que precisam muito dos aportes federal e estadual.
Quanto à terceira, ela costuma ser importante em regiões atrasadas; em última análise, ela faz com que as participações acabem servindo para remunerar prefeitos, vices, vereadores, secretários e outros funcionários de necessidade questionável, frequentemente despreparados (mas bem remunerados para os padrões locais) e aculturados no clientelismo paroquial (para os 793 municípios instalados e 210 criados de 1987 a 93, 1.003 prefeitos -quantos vices?-, no mínimo 9.027 vereadores -provavelmente mais- e muitos milhares de secretários, assessores etc.).
Há que se rever essa questão sob pena de vir o Brasil a ser retalhado em um número excessivo de municípios pobres, muitos deles mal habilitados para a autogestão e menos úteis às suas populações do que às ``elites" locais (e suas clientelas).
Os compromissos da solidariedade nacional sugerem ser justo que recursos arrecadados em municípios ricos ajudem a prover necessidades básicas dos municípios pobres (escolas e postos de saúde, por exemplo), mas não é justo que eles sirvam para remunerar pessoal, comprar veículos de representação, pagar viagens (quando não passeios...) de prefeitos e secretários às capitais a fim de apresentarem pleitos geralmente mal elaborados e, sob a ótica da União e dos Estados, não-prioritários.
Aí reside o nó do problema: como regular a autodeterminação (em tese, salutar) de modo que os recursos de origem não-local se limitem a cobrir o custeio e o investimento de inequívoca utilidade objetiva para os munícipes? Como regulá-la de modo a ajudar a redução de desigualdades, sem abrir espaço para o mau uso apoiado na autonomia na despesa e dependência na receita?
Convém que os preceitos distributivistas da Constituição Federal (e das estaduais, onde existirem) sejam regulamentados por leis que dificultem o uso das participações em despesas de pessoal, representação, viagens e outras discutíveis; talvez se faça necessário adaptar o artigo 160 da Constituição, que protege indiscriminadamente a autonomia municipal.
Se as administrações municipais (Executivo e Legislativo) quiserem implementar projetos-fantasias ou transitar pelo usufruto e o clientelismo, que o façam à custa da receita paga pelos cidadãos locais que as escolheram.
Caberia ao Estado verificar, antes do plebiscito da emancipação, qual o potencial fiscal do futuro município, esclarecendo os munícipes quanto aos limites da autonomia sobre a qual eles se manifestarão.
É provável que só isso não resolva, mas pelo menos complica a emancipação aventureira, que não raro se vale da compreensível aspiração à autodeterminação e de justos (ou ``fabricados") reclamos contra as centralizações excludentes, para alocar vantagens às minorias beneficiárias de algumas (ou muitas?) emancipações de escassa utilidade pública.

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