São Paulo, sexta-feira, 25 de agosto de 1995
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Discrição é motor dos livros de Louis Begley

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Louis Begley nasceu na Polônia, em 1934, e emigrou para os Estados Unidos depois da Segunda Guerra. Formou-se em Harvard; foi colega de turma do célebre escritor John Updike.
Begley e Updike foram os melhores alunos da turma. Mas Updike tornou-se romancista e Begley, advogado. Ser advogado, nos EUA, é ao que tudo indica um negócio excelente. Revistas, filmes e cartuns brincam com o poder que os profissionais de Direito possuem, nesse país dos direitos.
Aos 57 anos, Begley publicou seu primeiro romance ("Infância de Mentira", traduzido pela Companhia das Letras, que também editou muita coisa de Updike). Com "O Homem que se Atrasava" (Cia. das Letras, 1994), Begley já tinha firmado seu nome como escritor.
Curioso que um colega de classe de John Updike tenha, por assim dizer, tomado a decisão tardia de superar, no seu campo, o autor de "Coelho Corre" e do mais recente "Memórias em Branco".
Nesse sentido, o título do romance de Begley, "O Homem que se Atrasava", talvez possa ser visto com certa ironia: Begley estaria fazendo referência ao "atraso" de sua própria carreira de escritor, face ao exemplo mais fulgurante de seu contemporâneo Updike.
Updike é, a um tempo, mais virtuosístico e mais comum. É mestre em descrever experiências banais -a programação de uma rádio FM, um serviço de bordo de avião- em tons riquíssimos, quase místicos.
O homem comum -o Harry Angstrom de seu ciclo de romances sobre o "Coelho"- se vê magicamente provido dos recursos de um estilista; a vida cotidiana do americano médio ganha profundidade, conotações religiosas, aberturas intelectuais.
O maravilhamento diante da vida, o louvor aos pequenos prazeres e descobertas impostos pelo mundo são o tema dos romances de Updike. Claro que por trás disso há um narrador pessimista; a banalidade que se celebra nunca é celebrada o suficiente para deixar de ser banal.
Os romances de Louis Begley -falo de seu terceiro, recém-lançado pela Companhia das Letras, "O Olhar de Max"- adotam, creio, um ponto de vista diferente.
O meio social é o de uma alta burguesia sofisticada; não encontramos aqui os diligentes e crédulos americanos de classe média com que Updike simpatizava.
Viagens a Paris, decoradores, restaurantes finíssimos, heranças, tédio, tudo faz dos personagens de Louis Begley um caso de dependência face aos modelos de Marcel Proust e de Henry James: um grupo de boas-vidas, afinal, superiormente exangues, remexendo com dedos compridos o gelo de seus copos de uísque, conformados e discretos frente às traições conjugais de que foram vítima.
Begley não é um romancista capaz de atrair tanta simpatia do leitor quanto Updike. E talvez não atraia mais admiração tampouco -já que o virtuosismo de Updike é mais evidente. Mas então... o que Begley tem de melhor? Será apenas o charme discreto da burguesia?
O problema, ou o mérito de Begley, não está no fato de que é "discreto. A discrição pode ser a última virtude dos medíocres. O que o torna um romancista de primeira ordem é justamente o fato de tornar a "discrição" -esse tato, essa mistura de ignorância e de sabedoria, de leveza e de desengano- o tema, ou melhor dizendo, o motor de seus livros.
Em "O Homem que se Atrasava", um narrador bastante pálido e polido se encarrega de contar o drama vivido por seu melhor amigo. Todo o romance tira seu encanto, seu mistério e sua profundidade do fato de que a pessoa que conta a história sabe pouco, afinal, daquilo que está narrando.
Há um tom apagado e mesmo assim solidário nas aventuras de Ben, tal como são contadas pelo narrador. Infelicidade e circunspecção, desentendimento e afeto, distância e calor se fundem numa história que, depois de lida, continua como que intacta.
Nada se revelou, nada se resolveu, nada, ou quase nada, foi dito. O que houvesse a ser celebrado não valeu a pena, o que se sofreu resulta, feitas as contas, em muito pouco e uma vida, uma vida individual e própria, se esgota naquilo que foi, sem ser mais nada.
Minha impressão de "O Olhar de Max", terceiro romance de Louis Begley, é a de que não vai tão longe, literariamente. Há menos delicadeza, menos nuance na narração.
Mas o desafio era enorme. Novamente, estamos às voltas com um narrador insosso -Max-, só que desta vez um tema sensacional e dramático é abordado. Trata-se da Aids. Palavra que Begley não usa nenhuma vez.
Max é mais um advogado bem-sucedido, que tem acesso a altas rodas sociais. Num palácio italiano, reencontra seu velho colega de faculdade Charlie Swan. Demora bastante tempo até descobrir que Charlie é homossexual. Toby, o jovem efebo que acompanha Charlie, morrerá de Aids.
Já comentei, a propósito de "Anjos na América", peça em cartaz no teatro João Caetano, a dificuldade de tratar literariamente o tema da Aids. Tudo fica parecendo oportunista e dramático. Quem quer que escreva um livro sobre o assunto estará sob suspeita de buscar manchetes nos jornais.
Louis Begley aceitou o desafio do tema, sabendo de sua próprias qualidades como escritor. Isso envolveu dois tipos de procedimento.
O primeiro foi o de nunca mencionar o nome da doença. Mencioná-la, dentro do livro, teria o valor pouco literário de uma manchete em letras garrafais. Substituiu-a pelo termo, mais prático, de "morte", ou "doença" -e poupa o leitor dos pormenores mais sensacionalistas da agonia de Toby.
O segundo é o de substituir, por assim dizer, a gravidade da revelação anterior. O foco da narração se desloca, assim, para um outro tipo de revelação. O narrador não se espanta pelo fato de alguém estar com Aids, mas sim se espanta ao ver que tal colega da faculdade, antigo prodígio de conquistas heterossexuais, era gay.
"Espantar-se é entretanto um termo forte demais. O importante, para Begley, é que seu narrador não se espante com nada. Talvez seja esse o segredo de Begley como escritor.
"Procura do Tempo Perdido" é, afinal, um romance de aprendizado, um Bildungsroman, onde o narrador, da pré-adolescência à maturidade, dá conta do que aprendeu, das surpresas que teve, das experiências absorvidas -e de como, isso é o principal, viu de que modo vale a pena viver a vida.
Louis Begley assume, então, o papel de um narrador não-proustiano. A despeito de suas semelhanças com o modelo, parece estar empenhado em provar que não há nada a ser aprendido; que a vida é uma ocasionalidade vazia; para ele, até um livro de Proust, com sua famosa lentidão narrativa, é sensacionalista e ingênuo demais.
Colega mais obscuro de Updike, faz do proustianismo explícito deste um sintoma de quase infantilidade. É como se soubesse demais. E escrevesse seus romances, não para dar conta de seu processo de aprendizado, mas de sua sabedoria, de sua vivência adquirida ao longo de cinco décadas e meia.
Claro que nada sobra daí. A certeza, talvez, de que cada vida humana seja inútil, dispensável, leve brilho de uma vela pronta a morrer como todas as outras. Beckett já disse algo parecido, de forma bem menos sutil.
Begley sabe que a Aids é um acidente histórico, como a morte em geral. Seu último livro é excessivamente incômodo; na discreta beleza de sua arquitetura, sabe que não oferece consolação de espécie alguma. Isso piora o romance.

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