São Paulo, sábado, 26 de agosto de 1995
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Bill T. Jones inicia sua fase mais serena

ANA FRANCISCA PONZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O coreógrafo norte-americano Bill T. Jones, um dos maiores talentos da dança atual, inicia nova fase depois de lançar, em outubro do ano passado, a polêmica coreografia ``Still/Here", sobre a condição de sobrevivência e com cenas de doentes terminais em vídeo.
Ele próprio um sobrevivente, Jones é soropositivo para o vírus da Aids. Enfrentando o fantasma da doença com ótima saúde e sucesso artístico, ele representa a geração de coreógrafos que vem resgatando a dança narrativa, capaz de funcionar como um manifesto contra os preconceitos raciais, sexuais e culturais.
Em entrevista à Folha, por telefone, Jones afirmou que pode dançar no Brasil em setembro de 1996. ``Tenho lido Jorge Amado e gostaria de visitar a Bahia", disse o coreógrafo, que se apresentou com seu grupo no Rio de Janeiro e São Paulo, durante o Carlton Dance Festival de 1990.
Antes do próximo ano, será difícil encontrar espaço na agenda de Jones. Prestígio em alta, ele também assumiu, em março de 1994, o cargo de coreógrafo-residente do Balé da Ópera de Lyon, um dos mais importantes da França.
Para essa companhia, ele acaba de criar a coreografia ``24 Images Second", que estreou em junho e que homenageia os 100 anos do cinema, comemorados neste ano.
O tema enfoca os irmãos Auguste e Louis Lumière, nascidos em Lyon e inventores da primeira máquina de cinema. ``A simbiose que havia entre estes dois seres me fascina", observa Jones.
Em ``24 Images Second", Jones se volta para a dança pura. É também um espetáculo mais sereno -um contraponto à teatralidade chocante de ``Still/ Here", que gerou um artigo exaltado da veterana crítica Arlene Croce, da revista ``The New Yorker".
(Croce causou furor na intelectualidade nova-iorquina ao se recusar a ver ``Still/Here" e fazer uma crítica assim mesmo na linha ``não vi e não gostei"; Croce atacou o que ela chamou de ``arte de vítima", feita por artistas -segundo ela- de talento menor, que buscam credibilidade explorando sua condição de minoria.)
Outro sucesso recente foi o espetáculo que realizou na última semana de julho, quando dividiu sua vitalidade com dois outros ícones da cultura negra americana: a escritora Toni Morrison, prêmio Nobel de 1993, e o baterista de jazz Max Roach no espetáculo ``Degga", em Nova York.
O sentido de urgência contido nas coreografias de Jones também parece conduzir o ritmo intenso de suas atividades. No próximo mês, ele lança em Nova York sua autobiografia, pela editora Panthenon.
Nove anos após o diagnóstico que mudou sua vida, Jones, 43, é uma das expressões mais contundentes da dança contemporânea. Um dos doze filhos de um trabalhador agrícola, ele fundou seu grupo em 1982, junto com o parceiro artístico e amante, Arnie Zane, que morreu de Aids em 1988.
Para criar ``Still/Here", Jones se reuniu durante quase um ano com doentes terminais de várias regiões dos Estados Unidos.
Em meio a esta comunidade, gravou e filmou depoimentos, depois projetados em vídeos durante o espetáculo.
Com ``Still/Here", Jones desceu aos infernos. Superado o desafio, parece ter renascido para uma poética mais livre. Prova disso é ``24 Images Second" que, em determinado momento, mostra a imagem de um pássaro, símbolo do ato criador como forma de superar os limites da vida.
``Através desta coreografia, pude ir de encontro a épocas felizes de minha infância, quando estávamos descobrindo o milagre do cinema. Porém, acho que um de meus filmes prediletos, `A Bolha', em que protoplasmas monstruosos grudavam em seres humanos, já era uma metáfora das catástrofes que devastariam o mundo."
A seguir mais alguns trechos da entrevista com Bill T. Jones.

Folha - Quais as diferenças entre ``Still/Here" e ``24 Images Second"?
Bill T. Jones - ``24 Images Second" foi uma encomenda do Balé da Ópera de Lyon, que queria algo diferente de ``Still/Here", gerada a partir de minhas questões pessoais e do desejo de criar para minha própria companhia, que está completando 13 anos.
Em ``24 Images Second" tentei satisfazer minha curiosidade sobre esta coisa misteriosa chamada cinema. E também queria produzir algo que me aproximasse do elenco da Ópera de Lyon, com o qual convivo só dois meses por ano.
Para falar da jornada poética dos irmãos Lumière, decidi que seria uma coreografia extremamente baseada no movimento. Também deveria ser alegre, capaz de atingir um público amplo.
Folha - Por que você escolheu os irmãos Lumière como tema de ``24 Images Second"?
Jones - São personagens que me intrigam, diferentes por exemplo de Thomas Edison, inventor norte-americano que era mal-humorado e anti-social. Os irmãos Lumière eram pessoas de classe média, cidadãos ilustres, devotados um ao outro.
O amor que um tinha pelo outro é histórico. Eles casaram com mulheres que eram irmãs, viveram juntos a vida inteira e criaram esta coisa exótica e interessante que é o cinema e, que agora, traz sonhos e pesadelos à nossa realidade. Acho que havia uma conexão interessante entre a máquina de fazer cinema e estes dois irmãos humildes.
Folha - Depois de ``Still/Here", você está numa nova fase?
Jones - Sim. Na verdade, acho que estou sempre recomeçando. Foi muito importante fazer ``Still/Here", um trabalho forte e controverso, que continua vivo.
Mas, no momento, estou novamente interessado nas questões formais da dança. Com meu grupo, me dedico a simples estudos de movimento e música.
``Still Here" estabeleceu questões profundas para mim. É possível que faça outro trabalho semelhante, mas não agora.
Folha - Você ainda quer trabalhar o tema da condição de sobrevivência enfocado em ``Still/Here"?
Jones - ``Still/Here" delineia um momento meu que, na coreografia, foi representado por gente que luta para ficar viva.
Mas, agora, penso que este final de século é algo mais do que um enorme obstáculo. Vejo o mundo atual como um grande teste, uma arena que a toda hora testa o que fazemos, o que acreditamos.
Neste momento, em Nova York, vários grupos de dança estão se dissolvendo, por falta de apoio e patrocínio.
Isto me faz pensar na sobrevivência de meu grupo, da dança como arte, e no desenrolar desta situação em meu país. Todas estas questões estão no ar agora e, em meio a isto, eu e meu grupo somos alguns dos sobreviventes.
Folha - Como você reagiu aos comentários da crítica Arlene Croce, que falou mal mesmo sem ver ``Still/Here"?
Jones - Acho que foi um erro infeliz da parte dela, que acabou prejudicando sua própria credibilidade nos Estados Unidos.
Para ``Still/Here" seus comentários não trouxeram prejuízo. O público continua vendo o espetáculo, que continua interessante.
As críticas positivas e negativas que recebe lhe asseguram um lugar histórico no mundo da dança. Isto me ensinou que um ataque pessoal pode ferir profundamente, mas não pode destruir.
Folha - O que você acha do termo ``arte de vítima", usada por Croce no artigo?
Jones - Ela se referiu ao trabalho de uma geração inteira e, por isso, acho que é uma definição débil e imprecisa.
Folha - Com os problemas crescentes do mundo atual, você acha que a Aids pode se tornar um mal menor?
Jones - Em geral sou otimista sobre a situação do mundo e procuro não ver a Aids como um problema à parte. Há problemas assustadores ao nosso redor.
Neste contexto, acho que a Aids pode nos ensinar como lidar com estas outras situações, talvez até trazendo luzes quanto ao nosso futuro. Não quero ter uma visão de Polyana. Mas, há muito o que aprender com a Aids.
Folha - O que você está desenvolvendo no momento?
Jones - Assim que voltar da Escócia, onde participo com meu grupo, neste mês, do Festival de Edinburgo, estarei envolvido com cinco novos trabalhos.
Pretendo coreografar uma peça musical de Kurt Schwitters, artista plástico que marcou o dadaísmo com suas colagens. Também vou criar uma série de danças sobre a poesia de Dylan Thomas, além de coreografar uma peça teatral.
Devo dirigir uma versão de ``Still/Here" para a televisão. Há ainda meu livro de memórias, que estou preparando, e cujo título é ``Last Night on Earth".

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