São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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A relação custo-malefício

ROBERTO CAMPOS

"Não empreste nem peça emprestado; quem empresta perde o amigo e o dinheiro; quem pede emprestado está ferrado."
(Shakespeare, Hamlet, Ato 1, Cen. 3)

Se há uma questão em que a coerência ideológica e a rigidez doutrinária rapidamente sucumbem é a das crises bancárias. Impera um deslavado pragmatismo. Os governos têm de agir em função de uma análise da relação custo-malefício. O custo é o uso de reservas dos bancos centrais e fundos do Tesouro. O malefício são as corridas bancárias, altamente contagiosas e capazes de provocar colapso financeiro e depressão econômica. O consolo é que, no regime capitalista, bancos falecem. No socialismo, é o sistema que perece...
Neste continente, os dois governos mais explicitamente compromissados com a economia de mercado foram a dupla republicana Reagan-Bush e o governo Pinochet. Este, no começo da década dos 80, após um frustrado programa de estabilização e acossado pela grande crise da dívida externa, teve de estatizar bancos que se tornaram ilíquidos, voltando depois a privatizá-los.
Nos Estados Unidos, são rotineiras falências de pequenos bancos. Mas dificilmente o governo deixa de intervir quando estão em jogo grandes instituições ou existe um risco sistêmico. No período Reagan, houve a operação de saneamento do Continental Illinois, recentemente absorvido pelo Bank of America. No governo Bush, foi todo o sistema imobiliário de poupança e empréstimo que entrou em crise em virtude do descasamento entre ativos e passivos, resultante em parte da especulação imobiliária e, em parte, da puxada altista de juros pelo Federal Reserve Board nos anos 80. Criou-se uma empresa governamental, a Resolution Trust Corporation, para absorver passivos podres, a qual já exigiu investimentos superiores a US$ 150 bilhões.
As crises bancárias, qualquer que seja sua origem, criam sempre um ``dilema de Sofia", ou seja, a escolha entre a calamidade do uso de recursos públicos e a catástrofe da corrida bancária, destruidora da confiança dos poupadores.
O panorama bancário internacional está longe de ser tranquilo. Os Estados Unidos já parecem ter transposto as duas mais sérias crises da última década, provocadas, respectivamente, pelas moratórias de dívida externa dos países em desenvolvimento e por crises no mercado imobiliário. Mas o acirramento da competição, em virtude da globalização financeira, está exigindo um amplo processo de fusões e incorporações.
A Inglaterra atravessou as crises do Midland e do Barings. A França está às voltas com as peripécias de um grande banco estatal -o Crédit Lyonnais- com um passivo a descoberto comparável ao do Banespa. Na gigantesca economia japonesa, o sistema bancário está fragilizado. Sofreu menos que o norte-americano da crise da dívida externa e mais das consequências da "bubble economy" do fim da década passada, nutrida pela especulação imobiliária e pelo "boom" exportador, seguido de prolongada recessão.
As autoridades monetárias japonesas foram mais complacentes que as norte-americanas no tratamento dos bancos, permitindo sucessivas acomodações que mascararam a gravidade da deterioração dos ativos bancários. Há uma hierarquia de debilidades, começando com as uniões de crédito, seguindo-se-lhes as cooperativas agrícolas e as sociedades de crédito imobiliário (Jusen). O saneamento destas poderá exigir cerca de US$ 100 bilhões.
Mesmo os 21 maiores bancos japoneses estão fragilizados pelo clima recessivo e pela queda dos valores de Bolsa, que compõem parte do seu ativo. O episódio recente da corrida bancária que vitimou a corporação de crédito Cosmo, forçando uma intervenção conjunta do Banco do Japão, do governo metropolitano de Tóquio e da Agência de Garantia de Depósitos, é apenas uma das pontas do iceberg.
O Ministério das Finanças, tentando alertar os contribuintes para a eventual necessidade de recursos fiscais para aumentar a garantia dos depositantes, admitiu, em junho último, que os créditos duvidosos podem alcançar 40 trilhões de ienes (cerca de US$ 450 bilhões), dos quais metade dos 21 grandes bancos. Mas analistas financeiros internacionais estimam que, totalizadas as diversas instituições, os passivos duvidosos podem atingir entre US$ 800 bilhões e US$ 1 trilhão, exigindo maciço apoio governamental e um programa de saneamento que se estenderia até o ano 2000.
Na América Latina, o panorama não é encorajador. Os bancos mexicanos foram profundamente afetados pela crise do peso. Na Venezuela, a crise começara antes, com a falência do segundo maior banco, o Banco Latino, no começo do governo Caldera. A Argentina sofreu rudes abalos e perda de liquidez em consequência da fuga de capital volátil após a crise mexicana. Recorreu a empréstimos internacionais e acaba de criar um sistema privado de seguros de depósitos, com apoio internacional, para facilitar privatizações.
Ante esse panorama, é surpreendente que nosso sistema bancário privado não tenha sofrido convulsões maiores. Em seu conjunto, revelou grande flexibilidade de ajuste, tendo sobrevivido a seis planos de estabilização, com mudanças de padrão monetário; a duas moratórias internacionais; e, após o Plano Real, à redução da ciranda financeira, com suas gorduras inflacionárias. Mais recentemente, o próprio Banco Central impôs ao sistema custos extraordinários, pelo excessivo microgerenciamento do câmbio e dos depósitos compulsórios, criando enorme instabilidade nas regras do jogo.
Na falta de reformas estruturais e de privatização acelerada, a política de estabilização teve de fincar-se em duas âncoras: a taxa de câmbio e a taxa de juros. A puxada dos juros, acoplada à escalada de depósitos compulsórios, fragilizou os bancos de três maneiras: piorando-lhes a qualidade dos ativos pelo alto grau de inadimplência, facilitando a desintermediação e reduzindo a massa de recursos operacionais.
Para se ter uma idéia da diarréia normativa do Bacen, basta lembrar que, somente no segundo semestre do ano passado, após o Plano Real, foram editadas 13 medidas diferentes sobre compulsórios e restrições. No primeiro semestre deste ano, foram 14 as mudanças. Alterações dessa frequência só são cumpríveis num sistema altamente flexível e computadorizado. Até recentemente, os depósitos compulsórios represados no Bacen aproximavam-se de 10% do PIB!
Os bancos estatais, seja federais seja estaduais, apesar das vantagens de que desfrutam na captação de depósitos oficiais, revelaram menor capacidade de adaptação e entraram em crise generalizada, de que são exemplos mais conspícuos o Banerj e o Banespa no plano estadual e, no plano federal, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica.
Dentre os grandes bancos privados, o mais afetado pela crise foi o Banco Econômico. Em vista de uma ameaça de corrida bancária, a intervenção foi inevitável e até tardia. O que seus correntistas e poupadores podem legitimamente questionar é a falta de isonomia no tratamento, se comparada a atual intervenção com o caso de outro banco regional -o Meridional- e sobretudo com o regime menos traumático aplicado aos depositantes nos bancos estaduais (Banespa e Banerj), sujeitos a administração especial. Nada mais devastador para a sobrevivência dos bancos privados do que a aceitação mansa da idéia de que os correntistas de bancos públicos fazem jus a um tratamento privilegiado.
A crise do Banco Econômico traz à baila dois velhos temas: o da independência do Banco Central e o do seguro de depósitos. Parece que nosso aprendizado não passa apenas por um processo de descoberta. Exige uma redescoberta.
Na realidade, o Bacen foi arquitetado, em 1964, como o banco central mais independente do mundo. Era gerido por conselho monetário de nove membros votantes. Destes, apenas três eram demissíveis "ad nutum" pelo governo federal. Os outros tinham mandatos fixos, escalonados em sete anos. O presidente da República não escolhia nem os diretores nem o presidente do Bacen. Estes seriam escolhidos pelo Conselho Monetário dentre seus próprios membros.
Tratava-se de um sonho tecnocrático e de uma ingenuidade política, de que fomos culpados o professor Octávio Bulhões, Dênio Nogueira (então superintendente da Moeda e Crédito) e eu próprio. Essa arquitetura independente foi destruída com um simples piparote do segundo presidente militar, o marechal Costa e Silva. Bem nos havia advertido o sábio professor Gudin de que não havia clima cultural para a criação de um banco central e que isso só se tornaria possível após um longo período de equilíbrio fiscal.
Também o problema do seguro de depósitos estava, teoricamente, equacionado. Na grande reforma tributária de 1966-67, foram criados dois impostos especiais, que não fariam parte da receita tributária da União -o imposto de exportação e o IOF. Aquele serviria para atenuação de flutuações cíclicas dos preços de produtos de base. Este regularia a expansão monetária e serviria como seguro de depósitos em crises bancárias. No curso dos anos, o IOF passou a ser utilizado como receita orçamentária corrente e de confortável manipulação, pela facilidade de coleta e por não ser partilhado com outras unidades federativas.
Fico gélido quando ouço falar-se genericamente na independência do Banco Central. Que Banco Central? Pois ele nasceu independente e se tornou escravo do Tesouro. Era o xerife da moeda e se converteu em devasso emissor. Em vez de políticas estáveis, emite profusamente normas despóticas. Assumiu uma multiplicidade de funções -crédito rural, atividades de fomento, controle de consórcios, microgerenciamento do câmbio- estranhas às funções clássicas dos bancos centrais. Isso além de sucumbir ao corporativismo estatal e a infiltrações ideológicas que o tornam incapaz até de manter o sigilo bancário quando sofre provocações do PT...
Como medidas de emergência, o que há a fazer na atual conjuntura são duas coisas: equalizar-se o tratamento dos depositantes dos bancos estatais e dos privados e antecipar-se a criação do fundo privado de seguro de depósito previsto no artigo 192.
Sem as reformas estruturais de redimensionamento do setor público, não se criaria o clima cultural a que se referia Gudin para o funcionamento de uma autoridade monetária independente. E esta, quando vier, deve ter como exclusiva função o controle da emissão monetária e como objetivo único a estabilização de preços. Seria algo muito mais próximo de um "currency board" (junta de conversão monetária) do que de nosso enxundioso Bacen.

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