São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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CINEMA EM NEGATIVO

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Cinema e literatura. Eis um tema sempre atual, de novo em cartaz graças à publicação, na França, de um livro de Christian Janicot, intitulado ``Anthologie du Cinéma Invisible" (Arte/Editions Jean-Michel Place). Mais do que aquilo que os franceses chamam de ``pavé", e nós de tijolaço, é uma caixa de 30cm por 16cm, contendo 672 páginas e pesando quase dois quilos. Custa 350 francos, ninharia se considerarmos a riqueza do seu conteúdo e a tremenda trabalheira que deu ao autor.
Pode até ser fácil inventariar o cinema visível, mas o invisível, só mesmo com a paciência e perseverança de Janicot. Cinema invisível é, obviamente, o cinema que não se vê. Ou melhor, que não se viu. Em miúdos: filmes que nunca saíram do papel, projetos abortados, produções sustadas. E que estariam condenados ao oblívio eterno se ninguém os transformasse em obras pelo menos legíveis. Em sua antologia, Janicot relaciona e aborda cem filmes que morreram antes de nascer. É sua homenagem aos cem anos do cinema.
Cem filmes, cem roteiros não filmados -escritos, na maioria das vezes, por ficcionistas, poetas e artistas habitualmente não comprometidos com a palavra. Grande elenco: Guillaume Apollinaire, André Gide, Vladimir Maiakovski, Antonin Artaud, Louis-Ferdinand Céline, Jean-Paul Sartre, Jean Cocteau, Gabrielle D'Annunzio, Cesare Pavese, Antoine de Saint-Exupéry, Paul Claudel, Romain Rolland, René Magritte, Alfred Doeblin, William Burroughs, Blaise Cendrars, Isaac Babel, Boris Vian, Gertrude Stein, entre outros menos famosos e ativos.
Um poço sem fundo. Por conta própria tentei, anos atrás, algo parecido, em escala modesta. Juntei o que, então, me parecia exequível; vale dizer, os projetos frustrados dos diretores mais importantes. Muitos são, hoje, do conhecimento de qualquer cinéfilo que se preze. Os de Eisenstein, por exemplo. Ao menos de sua desesperada tentativa de filmar ``Uma Tragédia Americana", de Theodore Dreiser, em Hollywood, todos ouviram falar. De ``Sutter's Gold", nem tanto. Era o projeto que ele tinha na agulha ao chegar à Califórnia. Baseado em ``L'Or", de Cendrars, tampouco foi adiante.
Por falar no romance de Dreiser, afinal filmado por Josef von Sternberg e George Stevens, era desejo do autor vê-lo na tela sob a direção de Erich von Stroheim, também o favorito de Thomas Mann para recriar em imagens o até hoje infilmado ``A Montanha Mágica".
Ao contrário de Janicot, fiz dos cineastas o meu fio da meada. John Ford? Bateu as botas sonhando com um filme de seu livro de cabeceira, ``The White Company", de Conan Doyle. Além de ``Os Sete Pilares da Sabedoria" (leia texto ao lado), Ford teve a primeira opção de ``The African Queen", de C.S. Forester, em 1941, filmado na década seguinte por Huston (``Uma Aventura na África"), herdeiro, também, de ``Reflections in a Golden Eye", de Carson McCullers (``Os Pecados de Todos Nós"), que Christopher Isherwood em vão adaptara para Tony Richardson em 1966, e de ``Under the Volcano" (À Sombra do Vulcão), de Malcolm Lowry, velho sonho de Joseph Losey, useiro e vezeiro em perder grandes tacadas literárias. Losey morreu sem conseguir quem lhe bancasse, ainda, uma versão de ``Nostromo" (de Joseph Conrad, com roteiro de Robert Bolt) e outra de ``Em Busca do Tempo Perdido" (de Proust, adaptado por Harold Pinter).
Já F.W. Murnau embarcou para os campos elíseos com apenas uma perda considerável. Esteve a pique de filmar ``O Navio Fantasma", de Wagner, em 1922, mas desistiu ao saber que na Suécia havia outra versão em andamento. Seu conterrâneo Fritz Lang começou antes uma carreira pontilhada de dissabores. Em 1919, perdeu para Robert Wiene ``O Gabinete do Doutor Caligari". (Ok, não é obra literária. ``O Navio Fantasma" também não é, mas acho que você merece saber que Lang, além de ``O Médico e o Monstro" e ``O Diário de Anne Frank", quase dirigiu ``Winchester 73").
Orson Welles, em tudo glutão, namorou vários clássicos, além de ``Ulisses". Pela ordem: ``Guerra e Paz" (Tólstoi, 1943), ``Crime e Castigo" (Dostoievski, 1945), ``Henrique 4º" (Pirandello, 1946), ``Moby Dick" (Herman Melville, 1948). Antes de todos esses, empacou numa complicada produção de ``Heart of Darkness", baseado no romance de Joseph Conrad. Seria seu filme de estréia no cinema. O elenco já estava escolhido, os cenários prontos, nos estúdios da RKO, e a equipe a postos, quando ocorreu o primeiro adiamento. Depois, o segundo, o terceiro e o quarto. E o jeito foi estrear com aquele filme sobre o Assis Chateaubriand americano.
Pior do que um filme não feito, só um filme feito, mas não lançado. Tal foi o caso da versão, relativamente cara (US$ 10 milhões) para os padrões da época (1970), de ``A Condição Humana". Ou ``A Man's Fate", adaptação do romance de André Malraux, que Fred Zinnemann rodou cheio de entusiasmo e cercado de atores tarimbados (Liv Ullmann, Max Von Sydow, David Niven e Peter Finch), mas que, apesar de elogiada pelos poucos que a viram em sessões fechadas, jamais chegou aos cinemas. Curiosidade: o roteiro, vistoriado por Malraux, foi escrito por Han Suyin, a dublê de médica e romancista chinesa, cuja vida em Hong Kong rendeu um filme (``Suplício de Uma Saudade") estrelado por Jennifer Jones.
Mas voltemos à antologia de Janicot. Alguns dos autores por ele recenseados tiveram mais intimidade com o cinema do que amiúde se imagina. Cendrars trabalhou um bocado com Abel Gance, meteu-se com uma produção inglesa rodada em Roma (deu azar: o estúdio pegou fogo, o filme se perdeu, a atriz morreu, o produtor faliu) e até por estas bandas andou pensando em filmar (``Um Filme 100% Brasileiro"). O russo Babel ganhou a vida como ``script doctor" (reparador de roteiros) entre 1925 e 1939. Gide chegou a montar uma produtora, Le Film Parlant Français, que, de 1929 a 1931, funcionou como um pool de escritores-roteiristas. Infelizmente, os bancos não se entusiasmaram pela idéia. Nem os cineastas franceses.
Sartre andou pelos estúdios da Pathé em 1943 e 1944. Lá encantou o crítico e roteirista Nino Frank, que se surpreendeu com a visão cinematográfica do filósofo, em cujo crédito figuram dois filmes que, salvo engano, permanecem comercialmente inéditos no Brasil (``Les Jeux Sont Faits", de Jean Delannoy, 1947; e ``Les Orgueilleux", de Yves Allégret, 1953), os quais, a exemplo de ``O Condenado de Altona", convêm deixar de lado, pois não pertencem à esfera do invisível. Ao contrário de ``Le Faux Nez", fábula meio infantil sobre as bodas de um príncipe narigudo, publicada em 1947 e reeditada pela Gallimard há três anos. Ninguém se interessou em filmá-la.
Revés bem maior encerraria a carreira cinematográfica de Sartre no final da década de 50. Huston pediu-lhe que contasse em imagens a história de Freud. O filósofo produziu um cartapácio minucioso, mas infilmável, que Huston pôs de lado, encomendando outro roteiro a um profissional realmente do ramo. O ``pavé" sartriano afinal virou livro, é apenas um filme legível, digno, portanto, da antologia de Janicot, que, aliás, promete para daqui a alguns anos um segundo tomo.
Ele ouviu falar em textos não filmados do escritor grego Nikos Kazantzakis, do escultor romeno Constantin Brancusi, do pintor espanhol Juan Miró, dos compositores Eric Satie, Arnold Schoenberg e Arthur Honegger, e iniciou mais uma longa garimpagem.
A primeira lhe tomou quase dez anos e começou com a casual descoberta de vários roteiros surrealistas, mofando em gavetas e baús. O mais expressivo, ``A Lei da Acomodação Entre os Zarolhos", trazia a assinatura de Picabia. Em seguida, desencavou 158 entrechos para o cinema de Georges Mélis e topou com 40 ``scénarios" invisíveis de Boris Vian. ``Isso dá uma série de TV", pensou. Só as relíquias de Mélis deram. Com o resto, ele fez o que era possível fazer.

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