São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Eisenstein pretendia filmar "O Capital"

SERGUEI EISENSTEIN

Erramos: 27/08/95
Os trechos do diário de Eisenstein publicados à pág. 5-9 ( Mais!) de hoje, sob o título "Eisenstein pretendia filmar 'O Capital'", foram traduzidos por José Marcos Macedo e não por Samuel Titan Jr.
12/10/1927: Está decidido, vamos filmar ``O Capital" com base no roteiro de Karl Marx -única saída formal possível (...).
13/10/1927: (...) Além do drama, do poema e da balada no cinema, ``Outubro" apresenta uma nova forma de obra cinematográfica -uma compilação de ``essays" (ensaios, em inglês no original) sobre a série de temas que compõem ``Outubro". Admitindo que as sentenças citadas têm importância para toda obra, a forma de um filme discursivo, além de uma renovação interessante dos procedimentos, fornece igualmente sua racionalização na óptica ``obenerwãhnter" (``supracitada", em alemão no original). Já nos encontramos aqui em presença de cine-perspectivas inteiramente novas e de algumas iluminações sobre as possibilidades que serão rematadas na nova obra: ``O Capital", segundo o libretto de Karl Marx. Um cine-tratado.
08/03/1928: Ontem pensei muito no ``Capital". Na estrutura da obra que surgirá da metodologia da cine-palavra, cine-imagem, cine-frase, metodologia descoberta há pouco, com base nos ``deuses" (sequência usada em ``Outubro").
Variante intermediária do trabalho.
Partir do desenvolvimento trivial de uma ação qualquer. Por exemplo, a jornada de um homem. ``Minutieusement" (minuciosamente, em francês no original) narrada, à maneira de um esboço que dá origem a digressões. Unicamente para esse fim. Unicamente como pretexto para o desenvolvimento das ramificações de natureza associativa de todas as fórmulas, generalizações e dos postulados sociais do ``Capital".
Generalizar em noções os fatos fortuitos que são apresentados (será puro primitivismo, sobretudo se passarmos da falta de pão na fila de uma padaria para a crise do trigo e o mecanismo da especulação. Partir, ao contrário, de um botão de roupa e chegar ao tema da superprodução já é mais próprio e mais elegante).
No ``Ulisses", de Joyce, há um capítulo notável desse tipo, escrito à maneira escolástico-catequizante. Faz-se a pergunta e recebe-se a resposta.
O tema das perguntas: como acender um fogareiro a óleo.
E as respostas são de ordem metafísica. (Ler este capítulo. Ele pode ser útil metodologicamente.) Obrigado a Ivy Walterovna Litvinova (1).
17/03/1928: No que se refere ao materialismo histórico aclimatado a nossos dias, é preciso que eu descubra no ``Capital" equivalências atuais para os momentos de ruptura das épocas passadas. Por exemplo, o tema dos tecelões destruidores de máquinas deve ser mostrado por um choque em sentido contrário: o bonde elétrico em Xangai e os milhares de cules que ele privou de pão deitados sobre os trilhos -para morrer. (...)
06/04/1928: O primeiro esboço-rascunho estrutural do ``Capital" é o seguinte: parte-se do encadeamento de um acontecimento não-relativo qualquer. Digamos, ``a jornada de um homem", ou algo ainda mais insípido. Os elos da cadeia são os pontos de partida da formação de associações, que, por si próprias, possibilitam o jogo dos conceitos. Foi da maneira mais construtiva possível que cheguei à idéia de uma intriga tão banal quanto essa. Uma associação implica uma causa motriz inicial. Estabelecer o conjunto dessas causas, sem as quais ``não há com o que" se associar. A abstração máxima da noção proposta refulge com mais brilho quando o conceito se apresenta como ramificação de algo dotado da máxima concretude -de algo bestial-banal. Há no ``Ulisses" uma passagem similar, que virá em auxílio da forma propriamente dita (...) Joyce pode ajudar-me em meus propósitos: do prato de sopa aos navios ingleses afundados pela Inglaterra.
No estágio seguinte, a concepção do ``Capital" desdobra-se num ensino visual da abordagem dialética.
Estilisticamente, trata-se de uma linha argumentativa fechada sobre si mesma, na qual cada tema serve como ponto de partida para um conteúdo ideologicamente fechado, embora materialmente dissociado ao máximo -estabelecendo com isso o máximo de contraste.
Cabe ao último capítulo decifrar dialeticamente esta história, sem o auxílio do verdadeiro tema. ``Der grõssten Speisung!" (aqui, ``O coroamento da festa!", em alemão no original). Isso dará um belo verniz estilístico à obra em seu conjunto.
Obviamente tudo o que foi exposto é perfeitamente imaginável mesmo na ausência de um tal encadeamento (este não é o suporte do tema, mas simplesmente algo coerente). Entretanto, no plano paradoxal, um ``pequeno passo para trás" que se afasta da forma-limite confere sempre mais acuidade ao brilho da estrutura. Assim, no ``Sábio" (2), é importante que não se trate simplesmente de uma ``revue", mas de Ostrovski revisado!
Tais ``pontos de partida" poderiam ser introduzidos de um modo absolutamente diferente. O último capítulo trata da luta de classes, e será preciso arquitetar a historieta em função do máximo de rentabilidade de sua explicitação dialética.
Como consequência, os elementos da própria ``historiette" serão sobretudo elos, que, sob a forma de trocadilhos, darão impulso à abstração e à generalização (trampolins mecânicos para exemplos de uma atitude dialética em face dos fenômenos). No todo, a ``historiette" é o material de sua explicitação pela última parte desmesuradamente apaixonada. Razão a mais para construí-la da maneira mais banal e mais tênue possível.
Por exemplo, como o lado ``boa dona-de-casa" da mulher de um trabalhador alemão constitui, no contexto da Alemanha, o maior de todos males e o mais poderoso entrave à explosão revolucionária. A mulher de um trabalhador alemão jamais deixará seu marido sem um alimento quente -totalmente esfaimado. Este é seu grande papel negativo, freio à abertura social. Em nossa história isso poderia figurar sob a forma de ``uma sopa rala bem quente" -e o que isto significa ``no plano mundial". Único grande perigo: cair na ``niaiserie" (``tolices", em francês no original) por excesso de simplificação -isso é facílimo...
08/04/1928: ``O Capital" será dedicado -oficialmente- à Segunda Internacional! Como eles ficarão ``felizes"! Pois é difícil imaginar um ataque mais feroz à social-democracia, em todos seus domínios, do que ``O Capital".
O lado formal será dedicado a Joyce. (...)
NOTAS
1. Mulher do comissário de Assuntos Estrangeiros Maxim Litvinov.
2. Segunda encenação teatral de Eisenstein, baseada na obra de Ostrovski, na qual se acha inserido seu primeiro ensaio cinematográfico, ``O Diário de Glumov" (1923).

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

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