São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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`Vida Mansa' seria comédia de costumes

JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE

Sequência 9 - Noite. Apartamento de Marina. Continuação da sequência 7
Marina, vestida com a camisa do companheiro e nada mais, arruma freneticamente o apartamento. Tira gelo e prepara um uísque.
Ele - (sentado na cama, apoiado no travesseiro) Porra, que alegre despertar...Quer dizer que eu estou de saída e nem sabia? Assim, no meio da noite, de repente, sem aviso prévio, férias proporcionais, fundo de garantia, porra nenhuma? Fora de brincadeira, Marina, deixa eu dormir aqui. De manhã eu saio com você, antes dela chegar. (Deitado de novo) Meu lugar está tão quentinho...
Marina - Que história é essa de teu lugar? Aqui não tem...um lugarzinho que seja teu. Todo esse espaço aqui, essa porrada de metros cúbicos, é tudo meu. Você nem bem teve permissão pra entrar e já quer requerer uso-capião? Está pensando que só porque deu umas transadinhas comigo já virou posseiro? Tu não plantou feijão nem nada... Vai trabalhar, cara.
Ele - (levantando-se nu e indo se servir do uísque) Tá bem. Não chama a polícia que eu não chamo meu advogado. Me dá uma saideira que eu vou sob protesto, mas vou.
Marina - (tomando dele a garrafa) Nada disso. Vou guardar o resto pra minha amiga.
Ele - Porra, Marina, nunca esperei isso de você. Me negar um uísque, o último... Mas não há de ser nada. Tá legal. Me diga só mais uma coisa: e minha camisa? Tá confiscada?
Marina tira a camisa e joga para ele.
Marina - Toma. Vai. Te veste e cai fora.
Sequência 13. Interior, apartamento de Marina. Dia.
Marina - Vamos lá. Coragem. O prefixo é 031.
Inês - Ai, acho que isso vai ser demais pros meus nervos. (Começa a discar). Vai sem ensaio. Fica aqui perto, Marina, pelo amor de Deus.
Inês termina de discar. Espera que atendam. Fala.
Inês - Alô. Dona Santa? Aqui é a Inês. O Benjamim está? (Para Marina, enquanto espera) A velha está uma cobra. Não é demais ela se chamar Dona Santa? (Inês tem um ataque de riso histérico. Tampa com a mão o bocal do telefone e ainda está tentando se controlar quando o marido atende). Benjamim? É Inês. Olha, eu fugi. É, fugi. Ia te deixar uma carta, mas não consegui. Estou telefonando só pra dizer que estou bem, que vocês não se preocupem comigo. Não, não vou dizer onde eu estou. Quando der eu telefono para falar com a Heloísa e o Eduardo. Eu não pretendo voltar, Benjamim. Eu me separei de você. Não adianta que eu não vou dizer onde eu estou. Pode deixar que mais tarde eu dou notícia. Seu dinheiro? Peguei sim. Não, não é roubo, era comunhão de bens, não se lembra? Está bem. Não tem importância. Faz o que você quiser.(...)
Sequência 16 - Bar na praia de Ramos. Dia
O carro de Marina estaciona em frente a um dos vários pequenos bares da pracinha que fica na ponta da praia de Ramos. Três ou quatro vitrolas movidas a fichas, supercoloridas, uma em cada bar, misturam músicas no ar. Todas estão ligadas no volume máximo. Marina e Inês entram num dos bares, o que parece mais tranquilo. Sentam-se numa mesa vazia e pedem à patroa duas caipirinhas. A patroa é uma mulher forte, de aparência masculina, que veste short como todos os frequentadores do bar. Um deles, forte, sem camisa, está sentado, sozinho, com uma garrafa de cerveja e um exemplar do jornal ``O Dia" sobre a mesa. Olha diretamente para as recém-chegadas.
Marina - (para Inês, discretamente) Não te disse? Já tem o maior homenzarrão ali de olho em você.
Inês - Claro. Senta aí (a mulher já está sentada). Por favor, uma cervejinha bem gelada aqui pra nossa amiga.
Mulher - (para a patroa) Uma cerveja a caminho. (Para Marina e Inês). A cerveja é pra mim e a cachaça, aqui pra minha amiga. (Ela indica alguém a seu lado, num banco vazio). Ela só toma cachaça.
Marina - Ela?
Mulher - É. A minha amiga.
Marina e Inês se olham.
Marina - (para a patroa) Mais duas caipirinhas, por favor.
Inês - Marina, pelo amor de Deus, eu já estou completamente de porre.
Marina - Que nada, você está ótima. Hoje se comemora, é ou não é, amizade?
Mulher - É isso aí, minha filha. Manda ver enquanto dá, que do chão você não passa. (No ouvido de Inês) Aproveita.
Chegam as bebidas. A mulher toma a cachaça de um trago. Depois, enche o copo de cerveja.
Mulher - Viu que danada? Cachaça não pára cheia na frente dela.
Marina - A tua amiga bebe sempre assim?
Mulher - (desconfiando e não gostando) De sexta a domingo. Nos outros dias, ela folga. Só toma cinzano.
Inês - Vamos pôr uma música. Tenho de agitar um pouco, senão eu caio.
Inês vai até a vitrola e começa a ler o repertório.
Mulher - (bêbada, para Marina) Ela é fraca pra bebida?
O homem sem camisa, que estava sentado desde o princípio da sequência olhando para as moças, aproxima-se de Inês.
Homem - Está em dúvida?
Inês - Terrível. Entre ``Lençóis Macios" e ``Botões da Blusa", de Roberto. Mas acho que vou botar ``Emoções". Não é lindo?
Homem - Demais.
Antecipando-se a Inês, o homem, Xavier, tira umas fichas do bolso do short e coloca na vitrola. A música enche o bar.
Xavier - Dança?
Xavier e Inês passam a dançar enlevados, de rosto colado. Outros pares se formam, todos só de mulheres. A mulher que ficou com Marina esvazia o seu copo de cerveja e torna a enchê-lo, enquanto convida:
Mulher - Dá o prazer?
Antes de deixar a mesa, Marina e a mulher esvaziam seus copos. Inês continua dançando. Segura sempre o seu copo de caipirinha, agora já vazio, nas costas de Xavier.
Inês - (lívida) Não estou me sentindo bem. Tenho que sair daqui.
Inês se solta de Xavier e corre para fora do bar. Vomita, sempre como copo na mão. Marina e Xavier acodem. Inês está fria, mole, com toda tendência de escorregar para o chão. A mulher que dançava com Marina chega também, completamente de porre.
Marina - (tentando reanimar Inês) Inês. Inês. Ela está gelada. O melhor é deitar ela no carro e levar pra casa.
Xavier - (pegando Inês no colo) Qual o carro? Pode deixar que eu levo.
Xavier deposita Inês, praticamente desmaiada, ao lado de Marina. (...)

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