São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma visão de `Casa Grande e Senzala'

JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE
TRECHO DOIS - EXTERNA. NOITE. AMANHECER.

As primeiras luzes do dia tingem o horizonte e a lua ainda brilha no céu quando Van Der Ley e sua mulher surgem montando dois belos cavalos que galopam em direção ao topo da colina, de onde se avista o mar. Apeiam.
Van Der Ley saca da sela de um dos animais uma luneta e a aponta para o mar. Exultante com o que vê, oferece a luneta à mulher, que também sorri ante a visão.
Aos acordes de um tema flamengo, Van Der Ley dança com a esposa, tendo a luneta em uma das mãos e a utilizando como elemento coreográfico.
Evoluem graciosamente por alguns momentos enquanto a aurora ilumina o mar. Van Der Ley volta a olhar na luneta. Através dela, vê-se um quadro estilo flamengo em que a armada holandesa, repartida em esquadras, adentra a baía. ``Tocam-se a som de guerra trombetas bastardas de todas as naus, que com o vermelho dos pavezes vêm ao longe publicando sangue".
Corta para imagem real em movimento: sobre o mastro de uma das naus tremula o sanguíneo pavilhão em que um braço nu empunha uma espada. Som de tiros de canhão. Letreiros sobem imagem acima.
Trecho três - Fazenda de Domingos Gentílico. Externa/Interna. Anoitecer/Noite
Joaquim, sozinho e a cavalo, chega à fazenda de Domingos Gentílico, no vale do Rio São Francisco. É uma casa de bandeirante, simples, de pau-a-pique, quase contígua ao curral em que vaqueiros recolhem o gado quando anoitece.
Os serviçais de Domingos olham com estranheza e desconfiança para Joaquim. Ele apeia e bate palmas à porta do filho. Quem atende é sua nora índia. Ela está nua da cintura para cima e continua amamentando o bebê que traz nos braços quando vem à porta. Reconhecendo o sogro, corre a cobrir a nudez, enquanto lhe diz que entre, que vai chamar Domingos. Joaquim entra. Outras índias nuas, jovens, talvez três, mais uma velha índia, também nua, prosseguem seus afazeres. Várias crianças, algumas de colo, outras de até uns cinco anos, todas cafusas, estão por ali. A casa não tem divisões internas, e está organizada à maneira indígena, com diversas redes, e até pequenos fogos acesos.
Joaquim olha severamente para tudo aquilo, procura uma cadeira sem encontrar. Pede licença, e senta em uma das redes vazias. Reaparece agora a índia, já sem a criança, e com o colo coberto por um chale.
Entra Domingos, inteiramente ao natural: nu e descalço, fumando um cachimbo tosco. O cheiro do fumo é forte e Domingos tem os olhos congestionados. Ao ver o pai, olha-o fixamente, sem dizer nada.
Joaquim - Domingos, desculpe eu vir aqui, depois de tanto tempo, sem te mandar nenhum aviso. É que eu preciso de tua ajuda. Você não quer se vestir? Eu espero.
Domingos - Dentro de minha casa, eu fico como quero. Domingos caminha para a mulher e arranca com brutalidade o chale que a cobre.
Domingos - (em tupi misturado com português)Tira essa merda. Não vai mudar nada por aqui só porque esse velho chegou.
Joga o chale a um canto e senta-se no chão diante do pai.
Joaquim - Domingos, estou precisando de você. Um bando de negros e índios fugidos assaltou o engenho. Mataram um feitor, levaram mulheres, escravos, o diabo. Eu quero que você me ajude a pegar esses putos. Só com a venda dos que a gente não matar lá, já se tem lucro. Fora as terras onde eles estão, perto daqui, que passariam a ser tuas. Que tal a proposta?
Domingos - Eu devia te pôr para fora daqui, como a vaca da tua mulher fez comigo. Mas a tua proposta me interessa. Pode ser até que a gente faça negócio. (Para a mulher): Traz cachaça.
(Irônico): O papai voltou. Hoje, para comemorar, você dorme com ele.
Joaquim olha surpreso para o filho e depois desata a rir. Domingos ri também, tomando de sua mulher a garrafa e duas cuias, que enche de aguardente.
Índia - (Furiosa, em tupi) Diz pra ele que eu não sou tua escrava e não durmo com velho.
Domingos - (Em tupi para a mulher, que vai saindo de costas) Dorme sim.
Trecho 4 - Aldeamento/Externa/Interna. Manhã.
Abaré chega ao aldeamento trazendo os abusetes. Está apreensivo em relação ao que os espera, mas entra com eles usando no rosto uma expressão híbrida das que lhe ensinaram e adequada à situação: tolerância para com um desvio infantil que, por isso mesmo, talvez não seja heresia.
O padre Manuel aperta os olhos de águia ao ver entrar com Abaré aquela gente estranhamente ataviada, já meio desconfiado do que poderá significar aquilo.
Abaré - Enfim, padre-mestre, eis que chegamos à terra segura.
Pe. Manuel - Deus seja louvado, meu filho. Quem nos trouxe?
Abaré - São gentios que adotaram nossa doutrina com mais alegria do que de hábito se vê nessas terras. Imagine o senhor que eles têm papa, bispos, padres, santos e até uma santa Maria e um filho dela. (Para santa Maria e o menino, seu filho): Venham cá; venham tomar a bênção do padre.
Santa Maria e o menino se adiantam. O Pe. Manuel deixa que lhe beijem a mão, enquanto olha para eles como se não acreditasse no que vê.
Pe. Manuel - (para Abaré) Meu filho, dê-lhes de comer, que eles devem ter fome. Leve-os ao refeitório. Espere-me depois na sua cela que vamos ter o que falar. Primeiro vou conversar aqui com o papa deles, não é assim que também você o chama?
Entretanto, começara uma agitação considerável entre os abusetes. É que viram a igreja e comentam:
Abusete - Olha que linda!
Abusete 2 - Toda branquinha!
Abusete 3 - (para o papa, que o Pe. Manuel tenta levar pelo braço) Papa, papa, olha só que igreja!
Ao ver a igreja, o papa sente grande emoção. Livra-se maquinalmente do padre Manuel e corre atrás de todos os outros para dentro da igreja. O padre superior fica parado por um tempo, só pensando a loucura da cena.
Corta para dentro da igreja.
Os abusetes, em grande agitação, discutem, baseados em hierarquia própria, os lugares que caberão a cada um deles no recinto sagrado.
Alguns, do cerimonial, guiam o papa, que adentra a igreja, até ao altar-mor, onde o fazem sentar-se.
Enquanto isto, os outros estão disputando e cedendo-se lugares, num grande troca-troca.
Padre Manuel penetra na igreja e, com ar já resignado, caminha pela nave em direção ao altar. O papa, abraçando padre Manuel, convida-o para que se sente a seu lado. O padre Manuel gentilmente declina o convite, e pela simples convicção de um gesto, faz o papa descer do altar e o leva para fora da igreja. Ao saírem, cruzam com o padre José que, encantado, permanece ali de pé, a saborear o revelador espetáculo proporcionado pelos abusetes.
Pe. José - (para Manuel, contendo-o pelo braço)Padre, será essa a verdadeira religião dos brasis?
Pe. Manuel - (Fulminando-o com os olhos): Recolha-se à sua cela.

Texto Anterior: `A Hora dos Ruminantes' segundo Person
Próximo Texto: `Vida Mansa' seria comédia de costumes
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.