São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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A maioridade de um projeto

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há tempos eu queria escrever sobre a coleção Petit Poa, pouco conhecida fora de Porto Alegre, mas que já atingiu sua maioridade, com mais de vinte seis títulos. No projeto gráfico original, os livrinhos vinham reunidos numa pequena caixa, mesclando autores consagrados, Mario Quintana e Armindo Trevisan, com bons valores novos, como Dilan Camargo. É ``petit"no formato, no número de páginas, porém, abrangente em matéria de critérios, linguagens e poéticas. A editora responsável é Susana Gastal, mas, para ser editado é preciso passar pela avaliação do ``petit comité", formado pelo olhar lírico de Armindo Trevisan, pelo crítico Luís A. Fischer e pelo bardo ``desgarrado" Sérgio Napp. É bom lembrar que a ``Petit Poa" foi lançada na primeira gestão do PT e tem continuidade na atual prefeitura petista de Tarso Genro. Poesia: saudações.
Os três mais recentes lançamentos vestem novo projeto gráfico, que, ao enfatizar a relação entre poesia e cidade, estampa nas capas um mapa de Porto Alegre. A aproximação é feliz, especialmente com relação ao ``Tango da Independência", de Paulo Seben. Neste livro de estréia, ele nos surpreende com a combinação entre a métrica rígida do soneto e o barroquismo irreverente da linguagem: ``Até no meu amor por ti contrasto,/ tu feia em coisa alguma, eu nada belo;/ora te beijo ardente, ora sou casto;/ ora sou só ciumento, ora um Otelo".
Conjugando referências cultas com percepções da banal, Seben passeia com humor e habilidade por temas e assuntos tão batidos e inusitados como o carnaval, Stálin, a flor do sul ou Basílio da Gama. Por vezes, como no ``Soneto Automobilístico", a química barroquizante não funciona e as imagens perdem sua força de atração. Deixando os problemas de lado, tomemos os bons momentos do poeta, ``Tango da Independência", musicado por Vítor Ramil, e ``Soneto que Quintana não Fez": ``Acabaram-se os bondes amarelos,/ e eu saí, como bêbado, dos trilhos./ Hoje fico a cantar em estribilhos/ velharias, miudezas, caramelos".
``Derrapagens", de Maria Helena Weber, busca aparentemente uma dicção mais contida. Esta primeira impressão desfaz-se logo após a leitura dos 120 poemas curtos do livro. Do ponto de vista formal, eles mimetizam a estrutura do haicai, entretanto, a autora os sobrecarrega de uma linguagem excessivamente prosaica, destituindo-os de concentração imagética ou ressonâncias fonéticas. Em poesia, todo esforço de contenção só proporciona bons resultados quando o poeta consegue libertar a língua das formulações habituais, permitindo às palavras praticar sua arte combinatória. ``Derrapagens" não traduz uma construção musical, tampouco aposta no corte ou na dissonância para surpreender, caso do poema 11: ``Submeto à tua lascívia/ minha escolha/ derrotada/ indolor" ou do 111: ``Pode ser assim/ aos goles aos poucos/ até chegares inteiro". Os encontros e desencontros amorosos que perpassam o livro não encontram uma expressão lírica adequada. O desejo acaba embotado e os poemas perdem o gume da atenção.
Por último, gostaria de comentar ``Lá Vem o que Passou", de José Antônio Silva, o mais veterano dos três. Se, por um lado, demonstra maior domínio do verso, por outro, insiste em empregar certos truques: ``Uma estrada/ é um convite tão forte/ que fico na encruzilhada:/ sigo pro sul/ ou pro norte?" Trata-se de um cacoete da poesia brasileira contemporânea, de eficácia fugaz. José Antônio Silva abusa deste artifício, recorrente em vários poemas, como ``Ordem do Céu", ``Cinzas" ou ``Paz e Terra". Dito isso, quando ``Lá Vem o que Passou" recusa o registro da facilidade, penetramos no terreno da experiência, no qual a passagem do tempo e o perambular do poeta expresso no título são captados na imagem poderosa do ``Labirinto": ``O mistério da primeira vez/ o segredo obtuso de cada rês/ a rotina quebrada de todo mês/ o arabesco no cérebro, sob o fez/ a fé que se insinua, quando não crês./ Em tudo o labirinto onde andas./ Mas nunca o vês".

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