São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Uma palavra instável

ANTONIO CANDIDO

Quando a minha geração estava na escola primária, a palavra "nacionalismo" tinha conotação diferente da de hoje. Nos livros de leitura e na orientação das famílias, correspondia em primeiro lugar a um orgulho patriótico de fundo militarista, nutrido de expulsão dos franceses, guerra holandesa e sobretudo do Paraguai. Em segundo lugar vinha a extraordinária grandeza do país, com o território imenso, o maior rio do mundo, as paisagens mais belas, a amenidade do clima. No Brasil não havia frios nem calores demasiados, a terra era invariavelmente fértil, oferecendo um campo fácil e amigo ao homem, generoso e trabalhador. Finalmente, não havia aqui preconceitos de raça nem religião, todos viviam em fraternidade, sem lutas nem violências, e ninguém conhecia fome, pois só quem não quisesse trabalhar passaria necessidade. O famoso livro do conde Afonso Celso, ``Por Que Me Ufano do Meu País" (1900), exprimia no grau de máxima exaltação e máxima ingenuidade essa visão tola e perigosa, que só mais tarde seria ironizada com o nome de ufanismo.
Nós, meninos, ainda sentíamos os últimos contragolpes da Campanha Nacionalista dos anos da Primeira Grande Guerra, quando homens como Olavo Bilac (autor da letra do ``Hino à Bandeira") lideravam movimentos cívicos a favor do serviço militar obrigatório e da instrução também compulsória (num país onde não se criavam escolas e os fazendeiros proibiam os trabalhadores de aprenderem a ler). Os tiros de guerra, fundados então, alinhavam os moços fardados de cáqui, entoando hinos exaltantes: "Nós somos da pátria a guarda,/ Fiéis soldados por ela amada", advertindo no fim: ``A paz queremos com fervor,/ A guerra só nos causa dor,/ Porém, se a Pátria amada/ For um dia ultrajada,/ Lutaremos com valor".
O "amor febril" pelo Brasil (no mesmo hino) elevava a temperatura dos escritos e dos discursos, num tempo em que a retórica empolava o tom da vida intelectual e os oradores eram a sua expressão mais vasta e popular. Foi um tempo em que o patriotismo ficou propriamente nacionalista no sentido mais agressivo da palavra, gerando o sentimento (compensatório) de superioridade e o toque de xenofobia, que costuma acompanhá-lo, cobrindo uma certa belicosidade infusa. Nos anos de 1920 esta onda gerou o último arranco do vigoroso sentimento antiportuguês que vinha da Independência, em livros como ``As Razões da Inconfidência" (1925), de Antônio Torres, combativo reacionário que não tinha freios na língua.
Mas Antônio Torres era também um sólido pessimista. E o pessimismo formava a outra face da moeda nacionalista: a de Sílvio Romero, a de Euclides da Cunha. O livro deste, ``Os Sertões", revelou em 1902 uma imagem bem diversa do país: o interior miserável e esmagado, submetido a uma cruenta repressão militar, que no fundo refletia o desnorteio das classes dirigentes e as desmoralizava como guias do país. Era como se as estampas ingênuas do conde Afonso Celso fossem de repente dilaceradas pela garra da verdade soturna e deprimente. A partir de Euclides da Cunha, deveria ter ficado pelo menos constrangedor o ângulo eufórico, que recobria a incompetência e o egoísmo das classes dirigentes.
Que nem tudo eram rosas mostraram também certas pesquisas e descobertas científicas. Ao revelarem o estado calamitoso das populações rurais, elas comprometeram a possibilidade de uma visão tranquilamente otimista. Se de um lado o saneamento do Rio de Janeiro (1902-1906), por obra de Oswaldo Cruz, parecia redimir o país dos seus males mais humilhantes para o olho estrangeiro, a realidade explodia nas pesquisas sobre o estado catastrófico da saúde na maioria do interior, corroído por doenças como a que tomou o nome do cientista que descobriu o seu causador em 1909, Carlos Chagas. De 1915 é o discurso notável de Miguel Pereira, procurando rasgar o véu da retórica patrioteira e mostrando o outro modo de ser nacionalista: não disfarçar os fatos.
Nesse discurso, dizia ele que, sob muitos aspectos, "o Brasil ainda é um vasto hospital". A frase ficou, mas sem o contexto, muito mais importante. Referindo-se à campanha pelo serviço militar obrigatório, dizia o grande médico que, se a pátria não dá a seus filhos saúde, alimento e instrução, não tem o direito de lhes pedir que morram por ela de armas na mão; mesmo porque, no estado em que se encontrava, a maioria da população não tinha condições para isto. Este quadro sombrio desencadeou a reação indignada dos partidários da visão eufórica, mas a frase se tornou proverbial. Logo a seguir, Monteiro Lobato (é verdade que com certa amargura desagradável de patrão decepcionado) traria a imagem do caipira desvitalizado e retrógrado, abandonado ao seu destino triste. Com isto, deu uma estocada firme no regionalismo idílico, ou pelo menos pitoresco, da maioria dos escritores do gênero.
Portanto, neste século a palavra "nacionalismo" apresentou pelo menos duas faces, opostas e complementares: a exaltação patrioteira, que hoje parece disfarce ideológico, e o contrapeso de uma visão amarga, mas real. Pela altura das comemorações do primeiro centenário da Independência (1922), houve um esforço para pensar os dois lados e extrair uma linha ponderada. Mas continuou a exacerbação patrioteira, como se vê, por exemplo, na curiosa produção de Elísio de Carvalho, que, desde 1910 e o livro ``Esplendor e Decadência da Sociedade Brasileira", vinha elaborando uma visão fantástica -arianista, aristocrática, nativista e ao mesmo tempo fascinada pelos requintes europeus. Esse egresso anarquismo desenvolveu um nacionalismo triunfalista, que via na grandeza do país (hipertrofiada retoricamente) o fruto dos esforços das elites arianas e fidalgas... O nacionalismo ornamental atinge aqui um dos seus limites implícitos, ao excluir tacitamente da nacionalidade o pobre, o negro, o mestiço, o chagásico, o maleitoso, o subnutrido, o escravizado, como se fossem acidentes, manchas secundárias no brasão das oligarquias, idealizadas numa espécie de leitura delirante da nossa história.
Com mais sobriedade e inegável poder de análise, Oliveira Viana traria água para a roda desse moinho em 1920, com as ``Populações Meridionais do Brasil". E daria argumentos para o nacionalismo autoritário e conservador dos anos de 1920 e 1930, que teria derivantes para o lado do fascismo e alimentaria a ideologia do Estado Novo a partir de 1937. Nesse caso, o nacionalismo mostrava a sua faceta mais desagradável e perigosa, que é a posição política reacionária, caldo da cultura do militarismo, do provincianismo e da obtusidade cultural.
Ao mesmo tempo, os anos de 1920 viram atitudes mais fecundas e construtivas no campo da literatura, das artes e do pensamento, a começar pelas posições do Modernismo, eclodido na Semana da Arte Moderna. E também com o contraponto de tendências, a exemplo dos ensaístas (inclusive Oliveira Viana) reunidos no livro coletivo ``À Margem da História da República" (1924), leque de orientações que vão do tradicionalismo a certas visões lúcidas sobre o presente. Para José Antônio Nogueira, no ensaio "O Ideal Brasileiro Desenvolvido na República, "nacionalismo é sinônimo de patriotismo", mas com um traço próprio: "O patriotismo é um sentimento profundo. O nacionalismo é acima de tudo uma atitude intelectual", que deveria se opor como tal ao socialismo, ao anarquismo, tendências antipatrióticas e internacionalistas.
Pontes de Miranda situa o problema com uma penetração que o torna precursor de tendências dos nossos dias. No estudo "Preliminares para a Revisão Constitucional", diz que "o socialismo dos proletários dos povos exploradores pode ser universalista e não-patriótico; mas o dos povos explorados tem de atender ao duplo problema: o da submissão do trabalho ao capital e o do corpo social aos outros corpos sociais. Portanto, seria errôneo não associar ao movimento trabalhista de tais países o cuidado e o interesse pelos assuntos nacionais, pelo que poderíamos denominar o socialismo dos povos. Enquanto existir opressão econômica e política entre Estados, entre nações, o socialismo dos oprimidos tem de ser nacionalista”. (Os grifos são de Pontes de Miranda). Não se poderia definir com maior inteligência um problema que ia ser crucial em nossos dias, quando o nacionalismo se tornou sinônimo de luta antiimperialista e de libertação dos países colonizados e explorados pelas nações predatórias do Primeiro Mundo.
No terreno da cultura esse período foi cheio de debates e tentativas destinadas a definir uma teoria e uma prática nacionalista nas artes e na literatura. Em tais domínios não deixa de haver certa inversão do ponto de vista de Pontes de Miranda, pois se os países de velha civilização podem prescindir relativamente de empréstimos culturais, bastando a si mesmos, os novos dependem basicamente deles. Haveria portanto uma situação meio paradoxal: no terreno social e político, o país atrasado e novo precisa ser nacionalista, no sentido de preservar e defender a sua autonomia e a sua iniciativa: mas, no terreno cultural, precisa receber incessantemente as contribuições dos países ricos, que economicamente o dominam. Daí uma dialética extremamente complexa, que os modernistas brasileiros sentiram e procuraram resolver ao seu modo. É fundamental todo o seu movimento de valorização dos temas nacionais, a consciência da mestiçagem, a reabilitação dos grupos de valores marginalizados (índio, negro, proletário). Mas, curiosamente, fizeram isso recorrendo aos instrumentos libertadores da vanguarda européia, isto é, dos países de cujo império cultural procuravam ao mesmo tempo se livrar.
Essa dialética é nítida na obra de Mário de Andrade, o pensador do Modernismo, que lutou pelo nacionalismo em todas as dimensões, desde a língua (que ele desejava marcadamente diversa da de Portugal, não apenas na fala, mas em todos os níveis da escrita), até as concepções estéticas mais abstratas. Homem de requintada cultura européia e, ao mesmo tempo, conhecedor profundo das nossas tradições populares; erudito e polígrafo, não trepidou em adotar certo exagero nativista deformador, que comprometeria parte do que escreveu, mas que ele assumiu conscientemente, como arma de choque e ao mesmo tempo rigorosa instauração. O Modernismo foi um momento crucial no processo de constituição da cultura brasileira, afirmando o particular do país em termos tomados aos países adiantados. Mais do que ninguém, os modernistas fizeram sentir a verdade segundo a qual só o particular se universaliza, ou, como disse Mário de Andrade com relação à música: “Não há música internacional e muito menos música universal; o que existe são gênios que se universalizam por demasiado fundamentais”. Oswald de Andrade exprimiu brilhantemente na teoria da Antropofagia todo esse movimento, ao sugerir que a nossa maneira de fazer cultura era devorar a européia, a fim de transformá-la em carne e sangue nossos.
Com os modernistas ficou bastante desmoralizado o ufanismo dos decênios anteriores, a ótica deformante do otimismo patrioteiro. Mas eis que um lado do movimento se destaca e recai ao seu modo no vinco que parecia desfeito, criando um hipernacionalismo sentimental, romântico e pátria-amada: a do grupo Verce-amarelo. Assim ficou evidente como nas variações do nosso nacionalismo se cruzam a cada instante a atitude crítica e a obnubilação afetiva. Os líderes verde-amarelos se definiram no terreno político segundo várias gamas da direita, até a versão local do fascismo, com o integralismo de Plínio Salgado. Nessa altura, isto é, o começo dos anos 30, nacionalismo foi principalmente lenha na fogueira da reação política. Mas também era, aos trancos e barrancos, uma grande aspiração de pesquisar e definir a identidade do país.
Sob este aspecto o decênio de 1930 foi cheio de exemplos interessantes. O movimento revolucionário daquele ano marcou o amadurecimento do interesse dos brasileiros pelo Brasil, com extraordinário incremento dos estudos sobre a nossa história, organização política, problemas sociais e econômicos. Do seu lado, a literatura adquiriu dimensão nacional definitiva, superando os regionalismos e se afirmando como instrumento de uma visão das regiões enquanto partes subordinadas a um todo. Mas a palavra “nacionalismo” foi mais do que nunca um rótulo querido pelas concepções tradicionalistas e conservadoras, tendo na ponta as tendências de cunho autoritário (Azevedo Amaral, Oliveira Viana) ou francamente fascistas (Otávio de Faria, o Integralismo), que desaguaram em 1937 na ditadura do Estado Novo, por meio da qual Getúlio Vargas exprimiu e capitalizou as correntes antidemocráticas do momento, como forma de obstar as aspirações populares. Estas conotações predominavam e faziam do nacionalismo uma fórmula de salvação do statu quo.
No terreno estritamente cultural, houve depois de 1930 algo mais amplo, correspondente à nacionalização relativa dos mecanismos de transmissão do saber, o que permite discernir formas mais propícias de conceber o nacionalismo. A bibliografia escolar, por exemplo, teve acentuada inflexão neste sentido, com o estímulo ao livro didático de autores brasileiros para todas as disciplinas do nível secundário. Um grande empreendimento neste campo foi a “Biblioteca Pedagógica Brasileira”, ideada, organizada e dirigida por Fernando de Azevedo, um dos renovadores da educação. Ela não apenas desenvolveu esta atividade específica, mas criou com a série “Brasiliana” o maior acervo sistemático de conhecimento sobre o país que tínhamos conhecido até então. A capa dos seus volumes, onde se via, em cores que variavam, o mapa do país semeado de estrelas, era um programa. E o exemplo foi seguido por outras editoras, que aprofundaram o sentido de nacionalismo como pesquisa e conhecimento do Brasil, no passado e no presente.
Nesse mesmo decênio de 1930 ocorreu um fato que esclarece os mecanismos do nosso nacionalismo cultural: a fundação das escolas superiores de estudos sociais, filosóficos e literários. E de universidades que não fossem simples soma de escolas preexistentes, mas correspondessem a um projeto orgânico de instauração do saber por meio da reflexão e da investigação desinteressadas, isto é, não vinculadas imediatamente às exigências da formação profissional. Foi o que começou a ser realidade em São Paulo a partir de 1933 e 1934.
Ficando no caso paulista, que conheço melhor, aproveito para lembrar de que maneira um projeto de claro sentido nacional foi realizado com recurso quase total à contribuição estrangeira. Mais uma vez, no Brasil, a cultura voltada para a realidade local se construiu e desenvolveu por meio de pessoas, livros, idéias e métodos trazidos de fora e aclimados aqui na medida do possível. E o resultado foi bom. Se me reporto à experiência pessoal, lembro entre divertido e surpreso que os meus mestres brasileiros timbravam em citar autores europeus, em mostrar conhecimento minucioso da Europa e boa pronúncia do francês e do inglês, além de usarem categorias do pensamento europeu para construir imagens abstratas de uma realidade vaga. Enquanto os mestres franceses nos obrigavam a olhar o mundo circundante, recorrer às fontes locais, descobrir documentos, investigar a realidade próxima. Os brasileiros, patriotas e oradores de 7 de setembro, acabavam por nos tirar do Brasil e nos iniciarem num mundo inexistente. Os franceses, usando a sua língua, empregando os seus métodos, nos punham dentro do país. Mas eram combatidos pelos nacionalistas do tipo patrioteiro como elementos “alienígenas”, que vinham conspurcar a visão correta (isto é, fantástica) do país ...

Continua na pág. 14

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