São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Um pacto sinistro

O Cinema Novo são três filmes, diz Bressane

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

A seguir, Bressane e Sganzerla conversam sobre Glauber Rocha e o Cinema Novo. Inicialmente influenciados pelo movimento, ao darem início à produção da Belair, os diretores romperam com os cinemanovistas. A ruptura aprofundou-se com a instalação da Embrafilme e a adoção por vários membros do Cinema Novo de um modelo industrial de que Sganzerla e Bressane discordavam.

Bressane - Isso que se chama Cinema Novo, do ponto de vista cinematográfico, não existe. Existem dois, três filmes excelentes, excepcionais, que, aliás, justificam qualquer movimento. Esses filmes, no meu entender, seriam ``Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, e, num outro momento, num outro movimento, seria ``O Desafio", de Paulo César Saraceni.
Ruy Guerra, que o próprio Cinema Novo sempre considerou outra coisa, é o grande cineasta que fez os dois filmes, ``Os Cafajestes" e ``Os Fuzis", que faltaram ao próprio Cinema Novo. Não àqueles dois cineastas, Glauber e Saraceni, mas ao Cinema Novo como um todo, que não tinha cultura cinematográfica nem cultura de maneira geral.
Aquilo era uma cultura de advogado, não uma cultura de literatura, de poesia. O Ruy não, ele era um dos cineastas cultos do cinema. ``Terra em Transe" também me parece um grande filme. Esses filmes justificam o movimento.
Sganzerla - Mas não é questão de justificar, Júlio, eles fazem o movimento.
Bressane - Sim, fazem o movimento. Criaram um gênero de cinema político com esse talho de iluminação, de mise-en-scène nacional, que influenciou o cinema mundial. Um cinema que foi capaz de influenciar qualquer filme é importante. As deformações, vamos dizer assim, os desvios da fome, do stalinismo, do alpinismo social, da bandalheira, isso aí é outra conversa -e, evidentemente, atrapalhou e até anulou a feitura dos filmes, de muitos filmes ou da maioria deles. Com esses três filmes, porém, se afirmou e se criou uma coisa muito importante no cinema brasileiro, algo que o renovou. Não poderia haver um cinema como o seu, Rogério, e o meu, sem que tivesse havido isso -além, é evidente, de um outro imenso repertório, que nós viemos cada um a sua maneira também acrescentar.
Sganzerla - Havia uma evolução muito grande do cinema brasileiro. O AI-5 praticamente acabou com ela. Nunca mais se conseguiu manter aquele elo vital de uma arte baseada na continuidade. É muito delicado o processo do cinema e os defeitos todos afloraram. E o que é mais grave: perdeu-se a sensibilidade. Ficou-se insensível às questões sociais ou mentais ou estéticas, em nome de um alpinismo social, o que é inaceitável. Nós ficamos relegados aqui, às vezes, a um pacto errado com a ditadura, em nome de um dinheiro fácil que nunca foi a meta.
Bressane - Criou-se esse pacto sinistro, a Embrafilme, que deu no pior de tudo, em uma padronização, uma imagem conclusiva do cinema brasileiro, um processo de mediocrização, de boçalização, de controle das forças que se deveria deixar que circulassem. Foi feito um cordão sanitário. A política de filmes tornou-se a política de alguns poucos, que tentavam encontrar uma fórmula de filme que desse dinheiro -o que não ocorreu nem onde houve indústria, que foi nos Estados Unidos. Não há como encontrar o número do jogo da roleta, a não ser que ela esteja viciada.
Sganzerla - O vermelho 27, não é?
Bressane - Quando Glauber voltou da Europa, depois de todo um calvário de coisas, ouvi dele, em minha casa, que ``A Idade da Terra" era o filme que iria fazer depois do ``Di" e onde voltaria a conversar. Ele falou assim: ``Esse vai ser o meu diálogo com os filmes que vocês fizeram". Agora, você imagina se, para um homem daquela sensibilidade, seria preciso uma coisa dessas. Ele não precisava voltar, ele estava dentro. Ele irá viver para sempre com ``A Idade da Terra".
Considero a minha sobrevivência, a nossa sobrevivência, a sobrevivência de qualquer pessoa um milagre. Não se pode, depois das coisas desenhadas, da poeira assentada, fazer julgamentos. Ele foi em paz, não houve ressentimentos. O que é lamentável é dizer, com derrisão, que hoje ninguém está mais influenciado, que ninguém mais vive sob a sombra de Glauber Rocha. É uma pena, porque ele é um grande autor, um grande cineasta. Mas não deixou seguidores -e não os deixou, sobretudo, entre os que o cercavam. Ele foi muito solitário. Não teve um cineasta que ele influenciasse. É uma coisa terrível. Então, não é com ele que se fica assustado: é com os outros.
Sganzerla - As pessoas é que não puderam ser influenciadas. Talvez por medo do julgamento. Você não deve julgar. Você pode prever certas coisas ou orientar. O cinema trabalha com a polêmica, é normal. Agora, o que é totalmente anticinematográfico é esse marasmo, essa distância, que não partiu da gente. Nós procurávamos, tínhamos até, um contato pessoal, às vezes, esporádico, e ele era extremamente gentil, assim. Ele disse -é uma metáfora glauberiana, meio infantil: todo mundo fica assistindo o ``Fantástico" no domingo à noite e se informando com aquilo. Estão todos lá reunidos sem convidá-lo.
Bressane - Exatamente: não puderam ser influenciados ou não tiveram adestramento. Hoje, a dificuldade é justamente que não existem espíritos suficientemente adestrados e interessados, que estejam livres do ``Fantástico". Estamos falando aqui duma tese grega, uma tese pagã do auto-aperfeiçoamento, do esforço. Para você sofrer uma influência positiva de um cineasta sensibilíssimo e renovador como o Glauber, você tem que estar com...
Sganzerla - Com o diapasão afinado... Precisa ler Vieira, ver um filme como o seu, ``Os Sermões", que propicia esse culto da forma, precisa ver Stroheim... Não vejo nenhum cineasta assistindo isso. É um absurdo. Quer dizer, a programação é errada, mas o público também, porque está faltando crítica.
Bressane - Cineasta não vai a cinema. Não tem a visão do presente. Ficam vendo essa coisa americana, essa alta tecnologia -a frustração nacional. Não tem a visão do passado. Na verdade, não está vendo direito, porque não sabe o que é aquilo, de onde vem. Parece que tudo surgiu de uma varinha de condão chamada Primeiro Mundo.
Há explicações de todos os sentidos, até econômicas, dessa nova ordem, mas o que eu observo é que o que está se criando, e o que se criou, é o anticriador, a antiarte, nessa ordem capitalista de usura em que nós estamos. Capitalismo sem capital. É a criação de uma mentalidade de peão. Os ídolos, os estímulos nacionais, são para a formação, para a cristalização do peão, do serviçal de estância, o peão da indústria financeira...
Sganzerla - É uma bajulação eletrônica. A manicure da indústria de cosméticos. Eu acho que a novela é uma das grandes culpadas disso, Júlio, porque o consumo é tão desordenado -é novela, seis, sete, nove, dez. Isso não pode dar certo, sobretudo porque o país já é lento, tem uma formação mental extremamente afásica e colonial. Então, é esse desapreço pela verdade. É essa instrumentalização toda da picaretagem, que está gerando uma coisa monstruosa. Novela é um câncer.
Bressane - O cinema brasileiro está a uma distância abissal das novas tecnologias de manipulação de imagem. Essas conversazinhas de gabinete, de industrial paulista, criam a diferença que é a diferença sensível, isso sim. O ideal seria que fosse a civilização que produzisse a tecnologia. É uma demanda. O cinema no Brasil, a sociedade é que o deveria pedir. Deveria ser um clamor da sociedade: ``Nós precisamos do cinema porque precisamos nos aperfeiçoar, precisamos desse instrumento de aperfeiçoamento".

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